Reflexões sobre a escrita na formação inicial de professores
Ensino

Reflexões sobre a escrita na formação inicial de professores



Odisséa Boaventura de Oliveira

Programa de Pós-graduação em educação - UFPR. Email: [email protected]


RESUMO

O presente estudo busca nos textos produzidos por licenciandos ao analisarem aulas ministradas por eles a manifestação de subjetividades, singularidades e identidades ao se verem no papel de professor. Toma-se como fundamentação as noções de processos identitários e gêneros textuais. Observa-se que alguns licenciandos destacam as falhas cometidas na condução de suas aulas procurando justificá-las. Outros licenciandos destacam o papel satisfatório de suas práticas se identificando à profissão. Discute-se ainda sobre a contribuição da escrita de gêneros diferenciados na formação docente.

Palavras-chave: processo identitário; subjetividade; formação de professor; gênero textual.

Este estudo visa discutir a formação docente pelo prisma da linguagem, enfocando a escrita, o que nos leva a tomar da Análise de Discurso a concepção de linguagem como matéria estruturante dos sujeitos, ou seja, como uma "tomada de posição", segundo Pêcheux, o que equivale reconhecer que os lugares ocupados nas relações sociais definem os significados das palavras, delimitando o que cada falante (ou escrevente) manifesta e como o faz. Isso implica que nenhum sentido, no discurso oral ou escrito, é dado a priori, mas constituído e considerado "em relação a", isto é, as palavras mudam de sentido conforme a posição de quem as emprega. Por conta disso, refletir sobre posições assumidas pelo sujeito no uso da linguagem implica em trazer à tona noções de subjetividade e identidade, vale dizer, sua própria autopercepção e autorreconhecimento, o que se dá por meio de pensamentos e emoções conscientes e inconscientes, como demonstraremos.

Diferentemente de nós, há também uma corrente de investigação bastante influente nos meios acadêmicos relativa à formação do professor reflexivo, e que, para isso, vem investigando os instrumentos e mecanismos que levam o docente a uma familiarização com ações e pensamento críticos. Para ela, a expressão escrita é vista como uma maneira de promover tal reflexão, ou de incitar estranhamento, na medida em que o professor descreve o que fez e o porquê de determinadas atividades. Nessa perspectiva, muitos autores apontam a escrita narrativa como uma forma de registro das impressões sobre a sala de aula, na medida em que é utilizada de maneira informal, geralmente refletindo as dimensões subjetivas das perspectivas do professor, ou seja, possibilitando o registro dos pensamentos e sentimentos experienciados que podem fornecer subsídios ao seu trabalho (SILVA; DUARTE, 2001). Além disso, essa forma de registro é vista como importante para a construção da autoconfiança, percepção a respeito do processo ensino-aprendizagem e construção de novos significados para a prática de ensino (CRISTÓVÃO, 2002).

Nessa linha, Fiad e Silva (2000) defendem o diário como um gênero que se caracteriza pela exposição e difusão da vida privada, portanto trata-se de uma "fala escrita", uma vez que o locutor escreve para si mesmo ou dirige-se a um outro com quem convive no "campo da linguagem" ou a alguém eleito no "campo empírico". Para essas autoras o diário oportuniza a relação teoria-prática, uma vez que o produtor deste gênero pode relatar articulações com leituras e estudos realizados no curso e seu relacionamento na escola, dialogar com suas representações o que pode levar à sua conscientização e revisão de procedimentos. Mas para que o diário contribua para a formação reflexiva, Silva e Duarte (2001) ressaltam que as descrições de acontecimentos precisam ultrapassar o nível do simples relato e contemplar a análise das causas e consequências de suas ações para que o professor se transforme em investigador de si próprio, iniciando como narrador e posteriormente assumindo a posição de analista crítico dos registros elaborados. Por fim e em geral, esses estudos consideram que a escrita na formação docente deve se configurar em experiência compartilhada, ser concebida como espaço de troca (CARVALHO, 2002).

Por sua vez, na perspectiva por nós adotada, não concebemos a escrita dessa forma interativa, ou seja, para efeitos de promover trocas entre professor e alunos, nem segundo a pretensão de fazê-la instrumento de reflexão para o licenciando. De fato, nosso objetivo é o de identificar e descrever as impressões relativas às próprias práticas pedagógicas dos licenciandos em sua experiência docente de formação, bem como os sentidos que manifestam em seus relatos escritos sobre ela. Esse enfoque nos permite, adicionalmente, analisar o próprio discurso que a universidade aplica e imprime em quem passa por ela como estudante.

Assim, buscamos neste artigo compreender a "posição-professor" assumida nos textos dos licenciandos, destacando aspectos relacionados a esta atividade como a constituição de processos identitários, o gênero textual e as condições de produção da escrita, uma vez que, todo texto constitui representações, relações e identidades. Com estes conceitos analisaremos a produção escrita que se deu na disciplina Metodologia de Ensino, ministrada no 6.º período do curso de Ciências Biológicas quando os licenciandos ministraram aulas para alunos de uma escola rural no ensino fundamental e médio. Após esta produziram um texto analítico a respeito da linguagem utilizada, do enfoque dado ao conteúdo, da interação promovida com os alunos e da forma como se viram no papel de professor. Para isso, caminhamos na direção apontada por Riolfi e Alaminos (2007, p.305) quando afirmam que é importante "examinar as marcas que permitem supor a manifestação de um sujeito singular na escrita".

Processos identitários

Em lugar de adotar o termo "identidade" alguns autores preferem "processos identitários", pois traz a ideia de identidade não fixa, mas em constante fluxo de construção. Por assim dizer, um palco de lutas e conflitos, pois comporta a marca da ambiguidade do individual e do coletivo, do que é próprio e do que é alheio, do que é igual e do que é diferente, de permanência e de metamorfose, ora apontando para um polo ora para outro, numa síntese inacabada entre objetividade e subjetividade. Trata-se de um conceito que permite distinguir sujeitos e grupos, localizá-los no tempo e no espaço. Assim, identidade e subjetividade, conceitos relacionados à natureza do social e do sujeito, respectivamente, são indicativos de concepções teóricas que apontam para os modos de produção histórica dos sujeitos inseridos em práticas discursivas. O conceito de identidade toma como referência o estudo dos grupos sociais e da forma como se constituem, pressupõe a análise das diferentes dimensões nos modos de constituição histórica do sujeito (BALOCCO, 2007). Já o de subjetividade é pensado a partir do entrecruzamento de fatores sociais, linguísticos e culturais.

Riolfi e Alaminos (2007) abordam a identidade ou identificação, pelo âmbito da psicanálise, como sendo um laço emocional que uma pessoa estabelece com outra, isto é, quando toma alguém como sendo seu ideal, o que pode ser expressão de ternura ou de hostilidade. Segundo as autoras, a instalação de um processo identificatório abre a possibilidade da pessoa se reinventar e este jogo de identificações está em permanente construção de si e de seu trabalho. As autoras também descrevem os tipos de identificação propostos por Lacan, a saber:

Identificação à imagem proposta pelo outro: trata-se da identificação por meio da qual um sujeito pode vir a se compreender como sendo um eu, separado do outro do qual é, naquele instante da sua vida, objetivamente dependente. Ela permite a posterior construção de um dizer na primeira pessoa do singular [...]

Identificação ao desejo inconsciente: trata-se da identificação estruturante por meio da qual um sujeito toma alguém, que para ele é percebido como um sujeito desejante, como modelo. A condição de alguém vir a ocupar o lugar de um objeto copiado, portanto, é dar mostras de estar em permanente busca de algo que poderia vir a suprir a insatisfação do seu desejo. Lacan confere a essa identificação o poder de reintroduzir, como falta, o objeto perdido, responsável pela insatisfação [...] (RIOLFI; ALAMINOS, 2007, p. 303).

Por essas definições vê-se que a identificação está sempre relacionada à imagem do (proposta pelo) outro, aquela pela qual um sujeito pode vir a se compreender como sendo um eu, separado do outro, mas do qual é dependente. Essa identificação instaura, como visto, o campo que possibilita o desejo, proporciona ainda uma primeira separação do sujeito do outro e essa separação torna um querer subjetivado possível. Outra é a identificação ao desejo inconsciente, ou seja, o sujeito toma alguém, que para ele é percebido como um sujeito desejante, como modelo.

Segundo as autoras, Lacan afirma que só se responsabiliza por seu fazer aquele que sabe fazer, ou seja, aquele que constrói um estilo de conduzir a sua prática. Esta concepção, as autoras transpõem para o contexto da formação de professores, indicando que se responsabilizar pela própria prática implica em poder se autorizar a julgar a qualidade de seu fazer pelos resultados que obtém de seus alunos e não pela sua semelhança com o ideal ao qual estava identificado. Para elas, na formação de um novo professor, o processo identificatório é mobilizado e, idealmente, leva aquele que está em formação a construir um lugar próprio. Mas esta construção só se edifica caso esteja apoiada no andaime composto pelas múltiplas identificações colocadas em jogo ao longo de seu percurso.

Assim, concebemos que no campo do discurso pedagógico os professores constroem suas identidades por referência aos saberes teóricos e práticos, portanto mutáveis conforme o conjunto de valores ao qual se apropriam em determinados momentos. Dessa forma, a identidade está relacionada com a maneira e o modo de ser professor.

Por conta disso, nos textos produzidos pelos licenciandos, objetos dessa pesquisa, procuraremos compreender as imagens ou representações que eles têm de si, da futura profissão (as tarefas que lhes cabem, seus compromissos etc.), além das que eles têm dos alunos, já que estamos considerando que o sujeito se constrói pelo outro, para capturar os momentos de identificações do licenciando com o sentir-se professor. Enfocados os processos identitários, passemos aos gêneros textuais.

Gêneros textuais

Maingueneau (1989) aponta fatores importantes para pensarmos o papel da escrita, como a "deixis discursiva" referente ao EU (locutor discursivo), ao TU (destinatário discursivo), ao AQUI (topografia) e ao AGORA (cronografia), que definem a coordenada espaço-tempo da enunciação. Outro aspecto mencionado por ele é o lugar de onde se fala, enquanto determinante da identidade de cada indivíduo, sendo que este também ao enunciar garante sua autoridade institucional. Esta posição de onde fala o sujeito seria o lugar encenado no discurso, sendo a encenação uma das formas do real que só é acessado através do discurso.

O autor também reconhece contribuições do teatro quanto à ideia dos "papéis" que o locutor pode escolher para si ou para seu destinatário, estabelecendo a cenografia ou encenação de imagens que um remete ao outro no ato de comunicação. Para ele a Análise de Discurso enfatiza o lugar da enunciação, a topografia social dos falantes, de modo que a instância de enunciação constitui o sujeito e o assujeita, melhor dizendo, o lugar de onde se fala determina a identidade de cada indivíduo, sendo que este também ao enunciar se submete às regras.

Utilizando Maingueneau para interpretar os textos dos licenciandos apontamos elementos como a posição do enunciador, a deixis discursiva (espaço e tempo do discurso), o gênero adotado, que possibilitam compreender aspectos que permeiam as ações e os discursos dos futuros professores. Ele ainda associa gêneros textuais aos suportes de formulação dos textos, isto é, à sua forma de apresentação, ao modo de manifestação material dos discursos, por exemplo, panfletos, folders, livros, cartaz etc. Neles, o sujeito se manifesta a partir de posições enunciativas, marcadas pelo critério institucional, como participante de uma comunidade discursiva. Para ele, não se separa o que é dito das condições materiais e institucionais do dizer, pois eles remetem aos lugares enunciativos (de onde se fala).

Quanto aos gêneros textuais percebemos que grande parte das pesquisas que enfoca a escrita na formação aborda a utilização de diários, pois acredita que eles auxiliam na reflexão sobre suas experiências, suas crenças, decisões tomadas, atitudes e ações. Também defendemos que a escrita de gêneros não acadêmicos na formação inicial de professores pode contribuir para a assunção de um discurso próprio sobre a prática docente. Por isso enfocaremos adicionalmente a contribuição de outros gêneros escolhidos pelo licenciando para expressar sua percepção sobre si no papel de professor. Antes, porém, vale ressaltar a situação em que se deu as referidas produções escritas.

Condições de produção

Destaquemos as condições em que se deu a produção dos textos considerando o licenciando e o contexto da disciplina Metodologia de Ensino. Esta disciplina foi ministrada no 6.º período do curso de Ciências Biológicas e contou com uma carga horária de 90 horas no semestre. Os conteúdos abordados foram: Tendências pedagógicas e o histórico da disciplina ciências no Brasil; Questões curriculares: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná; Concepções de ciência e o ensino de ciências: Bacon, Popper, Khun, Bachelard; Enfoques de conteúdos: Ciência-Tecnologia-Sociedade (C-T-S), História da ciência, Cotidiano; Estratégias de ensino: Aula expositiva dialogada, Leitura, Escrita, Vídeo, Informática, Atividade lúdica, Estudo de campo, Experimentação, Resolução de problema; Avaliação; Livro didático.

Foi proposto, em meados do semestre, que os licenciandos fossem para a escola observar aulas de professores de Biologia/Ciências orientados por um roteiro que contemplava a interação professor-aluno-conhecimento, a dinâmica comunicativa na sala de aula, a utilização de recursos didáticos e a abordagem do conteúdo. Após assistir essas aulas deveriam elaborar um relatório descritivo-analítico, relacionando a prática docente à teoria estudada.

Outra atividade desenvolvida relacionada diretamente à prática docente foi a de ministrar uma aula. Esta foi realizada em uma escola rural de um município próximo à Curitiba, Campo Magro. Os licenciandos se organizaram em grupos e a escola em questão cedeu todas as aulas do período para eles. Para a análise desta atividade foi sugerido que observassem os seguintes aspectos: Conteúdo (enfoque, profundidade, exemplificação, relações e objetivos); Uso de estratégias (o que, como, motivação e facilitações produzidas); Linguagem (adequação, tom, vícios, analogias); Interação com os alunos (questionamentos feitos, motivação); Mudanças necessárias. Estes aspectos foram sugeridos em função do programa e objetivo da disciplina que é o de possibilitar ao licenciando a reflexão teórica acerca da metodologia de ensino na área das ciências naturais, a fim de que elabore propostas coerentes com as necessidades atuais. Foi solicitado que produzissem um texto relatando essa experiência por meio de um gênero diferenciado, como carta, diário, artigo de jornal etc.

Análise: delimitações e desenvolvimento

Os gêneros efetivamente utilizados pelos licenciandos, para nossa surpresa, foram: diário, boletim policial, crônica, carta, relato (de guerra, de sonho), relatório, conto, poesia, texto religioso, edital de concurso, bula de remédio, entrevista, artigo de revista. Também foram utilizados diferentes suportes (veículos) como jornal, livro, e-mail, slides e blog.

Nesses textos os licenciandos denominaram a escola, local em que se deu para muitos a primeira experiência docente, de diferentes modos dependendo do gênero escolhido. Por exemplo, no texto religioso, a escola foi descrita como "o monte do saber"; em um diário de bordo como "um outro planeta", já no relato de guerra como "um campo de batalha". Enfim, o espaço escolar foi abordado como um palco em que ocorrem diferentes "aventuras".

Matéria completa de endereço
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602009000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


Educar em Revista



loading...

- Meninos Na Educação Infantil: O Olhar Das Educadoras Sobre A Diversidade De Gênero
Isabel de Oliveira e SilvaI; Iza Rodrigues da LuzII IDoutora em Educação, Professora da Faculdade de Educação da UFMG/Núcleo de Estudos Infância e Educação Infantil ? NEPEI. [email protected] IIDoutora em Educação, Professora da Faculdade...

-
Alfabetizar é todo diaO professor deve planejar com antecedência e constantemente as atividades de leitura e escrita. Por isso, manter-se atualizado com as novas pesquisas didáticas é essencialThales de Menezes ([email protected])Colaborou...

- Desejo De Encadear Letras
Desejo de encadear letras Cristóvão Giovani Burgarelli Doutor em Lingüística; Membro do Espaço Psicanalítico de Goiânia e Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected] Linguagem é o...

- Entre O Plágio E A Autoria: Qual O Papel Da Universidade?
Obdália Santana Ferraz Silva Universidade do Estado da Bahia, campus XIV, Departamento de Educação Plágio no universo acadêmico: a negação da autoria Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. Lispector,...

- Para Vender, Trocar, Procurar: Classificados De Jornal Em Sala De Aula
Oferece-se ótimo gên. textual p/ usar na sla de aula. Interessados leiam a seguir. por Iran Ferreira de Melo* Levar anúncios de classificados para o contexto escolar e aproximá-los da sua real função no meio social: isso ajudaria a pensarmos sobre...



Ensino








.