Só há um jeito de começar a escrever: é começar agora. O conselho, mesmo que ninguém o peça embora o devesse, abre um livro excelente sobre a atividade escrita, Oficina de Escritores (Martins Fontes, 2008), de Stephen Koch. Manuais de escrita prêt-à-porter lembram aqueles guias de autoajuda existencial ou corporativa sempre muito reverenciados, mas inúteis - o de Koch não o é. Ele sabe e professa que a atividade de escrita não é um talento inato, mas tampouco é coisa que se aprenda sozinho.
Cada escritor tem ao menos uma grande lição digna de nota. Em língua portuguesa, podemos aprender muito sobre como elaborar bons textos se aproveitarmos a lição que a leitura dos mestres oferece.
A revista Língua faz a seguir uma pequena seleção das qualidades que alguns desses textos nos legaram, com certas qualidades de estilo em língua portuguesa.
Os autores selecionados não foram, evidentemente, os únicos redatores a fazê-lo. Muitos têm igualmente o que nos ensinar, e a lista que segue está longe de esgotar as possibilidades. Mas nada impede que o leitor imagine a sua própria lista.
Quebrar a expectativa
Padre Antonio Vieira
Exímio pregador, padre Antonio Vieira (1608-1697) foi um mestre do estilo barroco. Era particularmente eficaz em usar a quebra de uma expectativa da plateia como base para fisgar a atenção de seus interlocutores. Com a ameaça de invasão da Bahia pelas tropas holandesas, fez algo inusitado, por exemplo, no sermão de 11 de maio de 1625: passou uma descompostura no próprio Deus.
"Tão presumido venho de vossa misericórdia, Deus meu, que ainda que nós sejamos os pecadores, vós haveis de ser o arrependido", sentenciou no púlpito.
Vieira se levantara contra a ideia de a Providência favorecer Maurício de Nassau, que sem oposição à altura já ocupara do Ceará ao Sergipe, evocando outra fé que não a de Roma e outro Deus que não o português.
O sermão de Vieira mirava a apatia dos homens, pensava no conforto do Estado e da Igreja, mas o jesuíta sabia que pouco adiantaria acusar os súditos da coroa portuguesa àquela altura. Preferiu usar Deus como figura de retórica. Com isso, reduziu eventuais resistências a suas opiniões.
É recurso antigo esse, o de preparar o terreno, descrever uma situação facilmente assimilada pelo ouvinte, antes de emitir pra valer a própria opinião.
Modificar o conjunto de opiniões e valores do leitor antes de dizer realmente o que se
deseja. Uma aula de retórica.
Usar palavras significativas
Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira
Perguntado sobre que tipos de leitura nos ensinam a escrever, o poeta Glauco Mattoso assegura que a poesia ainda é a melhor maneira de conhecer as palavras.
- A poesia trabalha a palavra ao limite, isoladamente. Cada palavra é ela mesma um texto. Quando você mexe nelas isoladamente, pensa uma por uma, acaba tendo uma visão melhor do todo, que é o texto. O leitor interessado em aprimorar o seu processo de escrita deveria começar a ler os poetas clássicos - afirma Mattoso.
Mattoso cita referências clássicas antigas (Homero, Catulo, Horácio, Anacreonte e Virgílio), renascentistas (o Luís Vaz de Camões de Os Lusíadas; o Tomás Antônio Gonzaga de Marília de Dirceu) e, principalmente, modernas (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade).
- Drummond rompe com toda a tradição. O Bandeira fez a ponte entre dois estilos, entre a poesia mais regrada e a moderna. Ele tem uma fase de transição entre o parnasianismo e a literatura mais moderna, dá para aprender muito com tudo isso - pondera.
O poeta admite a importância de ler prosa, mas adverte que a prática pode produzir vícios na linguagem e na forma. Mesmo em profissionais da escrita, como no jornalismo, há vícios, como figuras de linguagem que se repetem. A leitura da poesia, por ser um gênero que lida com diversos significados e acepções das palavras, inclusive as figuradas, permite que as pessoas pensem melhor, reflitam sobre o significado das palavras e do mundo. Assim, acaba-se não só ampliando o vocabulário como descobrindo possibilidades expressivas, o que alarga o universo do redator.
Deixar algo implícito
Machado de Assis
Uma das muitas habilidades de Machado de Assis (1839-1908) era a sutileza com que abusava da ironia e do absurdo das situações quando parecia usar técnicas realistas de escrita.
No conto "Um Homem Célebre" (Várias Histórias), o pianista Pestana sonha com a imortalidade que nunca terá, aquela dada a Mozart, por exemplo. Aprendera música com um padre, que as más línguas tomam por seu pai biológico. Pestana tinha ambições eruditas, mas termina por fazer fortuna como compositor de músicas mais populares.
Como esse é o conflito central da narrativa, Machado descarta explorar a filiação bastarda logo nas primeiras linhas do conto. E concentra-se na história de Pestana. Vencido pelas imposições de ocasião, ele morre sem compor nada de erudito ("bem com os homens, mal consigo mesmo"). Mas eis que, de relance, Machado larga lá pela segunda metade do conto a marca de sua ironia. Enquanto narra o pianista num momento de entusiamos com a composição de uma música, menciona de passagem:
"Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação".
E nos dá, discretamente, com piscadela, a confirmação dos boatos maldosos, que, na superfície, garantira evitar.
Machado nos ensina a cifrar um pensamento na planície superficial de outro.
Cortar palavras excessivas
Graciliano Ramos
Na fala e na escrita, Graciliano Ramos foi um homem de poucas palavras. Literalmente. Sua contribuição inestimável à escrita brasileira está no ato de ligar a força bruta do enredo a uma forma rara de economia expressiva: a concisão lírica. Cortar um texto até deixar-lhe a medula, o indispensável à compreensão, o grau zero de escrita, periga retirar-lhe o molho, a alma, a força alusiva. Graciliano ensina a fazer outra pergunta. Destituído de adereço, descarnado ao osso, de que maneira um texto, ainda assim, pode sensibilizar? O escritor retrata o ambiente sem derramamento, mas achando o ponto em que ser conciso e seco emociona e envolve.
Graciliano, por exemplo, descreve a casa em que foi morar em Buíque (PE), aos 3 anos, em 1895:
"O quintal subsiste duro e nu, sem flores, sem verdura, tendo por único adorno, ao fundo, junto a montes de lixo, um pé de turco, ótimo para a gente se esconder nas perseguições. Desse lado o pé de turco marcava o limite do mundo."
Na linha final do período, os efeitos de uma vida de reclusão na casa do pai. A prosa concisa e sem excessos ou floreios de Graciliano é seca como as paragens que descrevia e os personagens condenados à derrota antes de terem ciência disso. Um estilo adequado ao material. Essa, uma outra lição de Graciliano.
A prática da reescrita
Jornais e revistas de excelência
Um texto tem de bastar-se. Para a professora Ana Rosa Ferreira Dias, do Departamento de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), todo texto deve ser autossuficiente: não precisar que o leitor busque informação em outro lugar para entendê-lo; ter vida própria, fazer-se presente mesmo na ausência do redator. Refazer um texto não é fazer outro novo a partir de uma folha em branco, mas reescrever o original.
A reescrita é um exercício de humildade do redator, de percepção de que o texto deve servir ao leitor, em primeiro lugar.
- É preciso ter em seu horizonte discursivo a imagem de seu leitor. Por quê? Isso vai fazer com que ele observe a adequação da linguagem à idade do receptor do texto, à sua posição social, ao seu grau de escolaridade - recomenda.
Quem deseja melhorar a própria escrita precisa adquirir o hábito de exercitá-la, reescrevendo o próprio texto. Essa lição nos é dada pelo jornalismo, que tem tradição consolidada de reescrita. Produtos jornalísticos viraram modelos disso ao marcarem época por prezar a excelência do texto, como Realidade, sucesso nos anos 60, disponível apenas em sebos hoje em dia. Alguns periódicos recentes retomam a tradição, como Piauí. Mas fuja dos textos padronizados das revistas semanais. A professora, que ministra cursos de redação, afirma que todo texto é fruto de um processo, de um trabalho.
A surpresa está na simplicidade
Nizan Guanaes, no comercial de TV Hitler
Criado em 1988 para o jornal Folha de S.Paulo pelo redator Nizan Guanaes, o comercial Hitler se tornou um dos exemplos máximos de simplicidade que arrebata, na história da comunicação brasileira. O texto apresenta um grande líder que tirara o país da miséria. Nós não vemos sua imagem, de imediato. Cada frase é lida por um locutor enquanto uma foto desse líder se expande a partir de um único pigmento. Ficamos sabendo que, sob o governo desse líder, a inflação do país acabou. O desemprego se tornou o menor do continente. A dívida externa foi paga em três anos. Tudo feito por um homem que, na juventude, sonhava ser pintor. A cada frase dita, mais nítida ficava a imagem... de Hitler. Ao fim do texto, a afirmação: "Com um monte de verdades podemos criar uma grande mentira".
Formado por comunicação verbal e visual, o texto foi criado para a agência W/GGK, com direção de arte de Gabriel Zellmeister e direção de criação de Washington Olivetto.
O texto de Guanaes mostra que o bom texto é o que busca surpreender o interlocutor. Levá-lo para um caminho e mudar as coordenadas, com outra história até então mantida em segredo. Diante do previsível e do convencional, a surpresa estabelece a curiosidade, e seu efeito se produz quando afinal a informação "secreta" se revela na superfície, pegando o leitor desprevenido.
A descrição que decifra
Guimarães Rosa
Descrever algo, alguém ou uma cena é uma necessidade contemporânea. Da receita de bolo à mensagem postada no blog, do boletim de ocorrência policial ao relatório de uma empresa, fazer uma descrição virou um desafio de escrita. Uma boa descrição é mais do que uma versão por escrito de uma fotografia. Guimarães Rosa foi um mestre da descrição clássica, que procura nos dar não só uma imagem visual do rosto de um personagem, por exemplo, mas um acesso ao seu estado de espírito:
"Aurísio é um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole velho, e com supersenso de cor e casta" ("São Marcos", em Sagarana).
Primeiro, ele nos apresenta uma série de traços exteriores: "mameluco brancarano" (mestiço com predominância do branco), "cambota" (manco, ou de pernas tortas), "anoso" (idoso), "asmático como um fole velho"... E em seguida uma revelação sobre a personalidade do indivíduo, que pressupõe (no presente caso) uma familiaridade prévia do narrador. O uso de palavras pouco comuns no cotidiano dá um relevo surreal à descrição, mostrando algo enquanto também o decifra. Eis uma lição rosiana.
Outras virtudes da língua |
As técnicas e figuras de linguagem na literatura lusófona (por Gabriel Perissé) |
Paradoxos José Eduardo Agualusa Os paradoxos fazem o leitor pensar o impensável, o que é sempre uma forma de exercitar a curiosidade e o espírito crítico. Nesta passagem de um conto do escritor angolano Agualusa, surge um impossível alfarrabista (dono de um sebo) que mantivesse os livros em ordem.
"Um alfarrabista organizado, metódico, sugere-me algo vagamente monstruoso, capaz de ofender a ordem natural das coisas, um pouco como um lagarto com duas cabeças, um advogado ingênuo, um general pacifista." ("Discurso Sobre o Fulgor da Língua", no livro Manual Prático de Levitação. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005, pág. 96). Anticlímax Luiz Vilela O anticlímax requer mão de mestre. Uma narrativa vai em progressão ascendente, cria-se expectativa, tudo indica que haverá um clímax, que se chegará a um ponto culminante, mas no final cai-se no banal. No conto "O Suicida", de Luiz Vilela, um sujeito ligou para a rádio avisando que saltaria de um prédio. O suicídio anunciado é aguardado com ansiedade mas...
"A decepção era geral, todo mundo se sentia logrado. O único que vi contente com a coisa foi um dos estudantes: tinham apostado uma Brahma, e o que apostara que ninguém ia suicidar ria e gozava o outro, dando soquinhos. Mas o outro ainda não se dera por vencido; ainda não estava escuro, o sujeito ainda podia pular. Mas ninguém pulou mesmo." ("O Suicida", no livro Os Melhores Contos de Luiz Vilela. São Paulo: Global, 1988, pág. 129).
Antítese Fabrício Carpinejar
Contrastes e antíteses são uma forma de ressaltar as dualidades da existência. Algumas dicotomias clássicas podem ser recuperadas em tom mais atual, como Carpinejar faz, opondo otimistas e pessimistas.
"O otimista é frouxo, repete as mesmas frases evasivas e genéricas como 'precisa acreditar' ou 'tenha esperança'. O pessimista é pessoal, persuasivo, abrirá seus segredos com desembaraço. O otimista rende somente autoajuda. O pessimista proporciona alta literatura." ("O Humor do Fodido", no livro Mulher Perdigueira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, pág. 87).
Anáfora Raduan Nassar A anáfora [repetição de palavras] é uma das estratégias de que dispomos para dar ênfase aos nossos textos. Neste momento de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, uma palavra reaparece no início de sucessivas frases.
"O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente [...]." (Lavoura Arcaica. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, pág. 95). Eufemismo João Ubaldo Ribeiro
Dentre todos os medos humanos, a morte é a campeã e, por isso, tornou-se um dos maiores alvos do eufemismo, que atenua a ideia mórbida. João Ubaldo Ribeiro nos dá uma amostra desse recurso.
"Vítima contumaz do terrorismo médico que nos assola em jornais, revistas e reuniões sociais, todo dia me convencem de que serei ceifado ou, no mínimo, entortado definitivamente pelas doenças que nos pegarão, quer deixemos de fazer, quer persistamos em fazer alguma coisa." ("Mantendo a Forma", em O Conselheiro Come. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pág. 86). |
Outras virtudes da língua |
As técnicas e figuras de linguagem na literatura lusófona (por Gabriel Perissé) |
"Vítima contumaz do terrorismo médico que nos assola em jornais, revistas e reuniões sociais, todo dia me convencem de que serei ceifado ou, no mínimo, entortado definitivamente pelas doenças que nos pegarão, quer deixemos de fazer, quer persistamos em fazer alguma coisa." ("Mantendo a Forma", em O Conselheiro Come. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pág. 86). Símile Mia Couto É um recurso estilístico em que a comparação entre dois seres ou duas realidades tem por finalidade realçar um dos termos, como neste exemplo encontrado num romance do escritor moçambicano Mia Couto: "Falo muito do mar? Me deixe explicar, senhor inspector: eu sou como o salmão. Vivo no mar mas estou sempre de regresso ao lugar da minha origem, vencendo a corrente, saltando cascata. Retorno ao rio onde nasci para deixar meu sémen e depois morrer. Todavia, eu sou peixe que perdeu a memória." (A Varanda do Frangipani. Maputo: Ndjira, 2001, pág. 50). Etimologia Adélia Prado Utilizar as surpresas que a etimologia reserva é uma forma de abordar diferentes questões. A linguagem conserva em seus meandros significados esquecidos, mas resgatáveis, como neste trecho de Adélia Prado: "Por causa da minha caprichada educação religiosa, aprendi coisas lindas: solidéu, por exemplo, aquele bonezinho minúsculo que papa mais bispo usam e se chama assim por causa de poder ser tirado só pra Deus. Olhe bem: soli Deo!" (Solte os Cachorros. São Paulo: Siciliano, 1979, pág. 77).
Metáfora Ferréz A figura de estilo mais importante e mais polêmica é a metáfora, e todo escritor sabe que é uma arma fundamental, como nesta crônica de Ferréz, em que mostra o perigo da inteligência.
"Estou armado, talvez seja preso por porte ilegal de inteligência, e passe a vida inteira em prisão aberta, pagando uma grande pena e vendo um país ir pro buraco." (Cronista de um Tempo Ruim. São Paulo: Selo Povo, 2009, pág. 50). Prosopopeia Clarice Lispector Referindo-se e falando com Brasília como se fosse um ser humano, Clarice Lispector oferece um bom exemplo de prosopopeia, ou personalização.
"Ai que te pego, Brasília! E vais sofrer torturas terríveis nas minhas mãos! Você me incomoda, ó gélida Brasília [...]." (Para não Esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pág. 51). Anadiplose Osman Lins Anadiplose, apesar do nome pomposo, consiste apenas em repetir a última palavra de uma frase no começo da seguinte, dando realce a algum elemento, como os sapatos desse personagem de Osman Lins.
"Olhou a esposa. Ela cruzara os pés e estava de sapatos, aqueles sapatos negros e já velhos, resguardados pelo seu zelo diligente contra o uso e o tempo." (O Fiel e a Pedra. São Paulo: Summus, 1979, pág. 204).
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