Ensino
A educação fantástica
A educação fantástica
No cotidiano escolar extraordinário, professores e alunos são de carne e osso
Gabriel Perissé*O que seria uma educação fantástica?
Não é aquela que só existe em nossa fantasia. Uma educação sem problemas e conflitos, depurada de tudo o que incomoda na dura realidade. Uma escola feita de sonho. Uma escola bucólica, sem sinais de bullying . Uma escola de conto de fadas. Uma escola em que imperassem a pontualidade e a limpeza absolutas. A alegria e a paz. A harmonia e o amor. Professores serenos, alunos brilhantes, pais interessadíssimos. Não é nessa educação fantástica que estou pensando.
Também não me refiro a uma educação fora do comum, extraordinária, prodigiosa. Uma educação que "arrebentasse a boca do balão". Professores que fizessem o milagre da aula perfeita. Alunos geniais que estudassem tudo e ainda se esmerassem para além do obrigatório. Uma escola de ponta. Onde todo mundo lesse todos os livros de ponta a ponta. E todos tivessem a resposta certa na ponta da língua. Educação em ponto de bala!
Tampouco educação fantástica seria aquele projeto extravagante, bizarro, cheio de originalidades que nos deixassem perplexos. Professores super-heróis, professoras transformadas em mulheres-maravilha, todo mundo sobrevoando currículos, grades e parâmetros. Aulas sobre temas do outro mundo. Alunos excêntricos, superdotados. Uma escola que seria um centro de cultura transcendental, voltada para o século 25!
Nada disso. A educação fantástica em que estou pensando é a educação que temos aqui e agora. Na esquina, no bairro. Mas que pode ser vista e vivida de outro modo. De um modo fantástico .
Tentarei explicar o fantástico dessa educação com a ajuda do escritor Murilo Rubião, considerado por muitos o "Kafka brasileiro".
Todo aluno é fantástico
Quando concebo a educação fantástica, não me distancio do nosso dia a dia. O fantástico da educação real está em continuar sendo real, visível, reconhecível. Professores de carne e osso, alunos interessados, ou dispersivos, ou apáticos, ou intratáveis. Educação com altos e baixos. Escolas boas, escolas ruins, escolas médias, aulas horríveis, aulas excelentes, aulas medianas. A realidade já é fantástica!
Nos textos do escritor mineiro Murilo Rubião (1916-1991), o estranho e o sobrenatural não são coisas estranhas e sobrenaturais. Fazem parte do mundo. O absurdo é componente natural da realidade.
Num dos seus contos mais conhecidos, Teleco, o coelhinho , o encontro entre narrador e Teleco transcorre com naturalidade. Essa naturalidade é espantosa de tão natural que é.
O coelhinho se aproxima e pede um cigarro. O narrador se comove com a polidez daquele coelhinho cinzento, cujos olhos estão cheios de mansidão e tristeza. Em poucos minutos tornam-se grandes amigos. O narrador, que vive sozinho, convida o coelhinho abandonado para morar em sua casa. E o animal falante faz suas perguntas e ponderações:
- Por acaso, o senhor gosta de carne de coelho?
Não esperou pela resposta:
- Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é o meu fraco.
Dizendo isso, transformou-se
numa girafa.
- À noite - prosseguiu - serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?
Respondi-lhe que não e fomos morar juntos .
A verdade literária é que todos somos instáveis. E versáteis. Coelho, girafa, cobra e pombo são diferentes possibilidades de um mesmo ser. O perfil do aluno é apenas um contorno, uma notícia concisa, a visão limitada da complexidade que habita uma pessoa.
Educação fantástica consiste em perceber, sem fazer disso motivo de escândalo, que cada pessoa tem mais de uma face. E tem lá as suas fases, seus momentos. E diz frases contraditórias, assumindo a esperteza de uma cobra, a rapidez de um coelho, a altivez de uma girafa, ou a ingenuidade de um pombo.
Os alunos são fantásticos porque são todos diferentes e escapam das avaliações padronizadoras. Não é fantástico ver um aluno excelente em uma ou duas disciplinas, bom em outras duas, medíocre em várias e, numa terceira, pura nulidade? Fantástico e totalmente natural. Estranho mesmo é que não saibamos lidar com a realidade.
Não faltam exemplos de alunos fantásticos.
O genial cientista sueco Carlos Lineu (século 18) era visto como aluno fraco, e ainda por cima fugia das aulas para observar plantas.
O naturalista Charles Darwin (século 19) foi considerado um aluno com raciocínio lento ("travado", diríamos hoje), porque não acompanhava a evolução das aulas!
O escritor alemão Thomas Mann, ganhador do Nobel de Literatura em 1929, era apontado como um mau aluno - desprezava os professores e vivia lendo o que bem entendia.
Jean Gabin (século 20), um dos maiores atores do cinema francês (deu vida ao comissário Maigret nos filmes baseados na obra de Georges Simenon), era tachado de mau aluno durante a adolescência.
O escritor Graciliano Ramos tinha uma "reputação lastimosa" na escola, ele próprio afirmava. Menino calado, retraído, pensavam os professores que era um "quase idiota".
O inesquecível sambista e ator Adoniran Barbosa ia estudar a contragosto. Foi expulso do grupo escolar no terceiro ano primário!
Na área da educação brasileira contemporânea, professores fantásticos fizeram feio na escola: Carlos Rodrigues Brandão, Doutor em Ciências Sociais e poeta - "até perto dos 18 anos fui um típico mau aluno carioca" -; José Santiago Naud, cofundador da Universidade de Brasília - "fui um mau aluno [...], uma vez reprovado em latim e três em filologia" -; Rubem Alves, mestre de tantos professores, articulista desta revista, repete em livros e palestras, com todas as letras, que foi um mau aluno.
Curiosidade fantástica
Em outra de suas histórias, A cidade , Murilo Rubião fala de Cariba, único passageiro de um trem que, inexplicavelmente, parou numa estação e não prosseguirá viagem. Cariba é obrigado a descer. Dirige-se ao povoado mais próximo em busca de informações. Pergunta aos habitantes que encontra pelas ruas qual o nome da cidade, se é cidade nova ou velha, quem manda no município... Ninguém lhe responde nada.
A polícia vem prendê-lo. Recai sobre ele a acusação de fazer muitas perguntas. Estranhas perguntas. O delegado ouve as testemunhas. E formaliza a prisão pelo crime de "exagerada curiosidade".
Quantos alunos fantásticos, curiosos demais, não têm espaço para suas perguntas inconvenientes? E ficam presos na cadeia do tédio. Como Cariba. Que não sabe se um dia será libertado. Caminha de um lado para outro da cela, perguntando a si mesmo como foi parar ali!
* Gabriel Perissé ( www.perisse.com.br ) é doutor em Filosofia da Educação (USP), pesquisador do NPC - Núcleo Pensamento e Criatividade
http://revistaeducacao.uol.com.br
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