Rebeldia e democracia na escola*
Ensino

Rebeldia e democracia na escola*



Reinaldo Matias Fleuri
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação


Introdução
A luta contra o autoritarismo e pela construção de processos democráticos na escola tem sido um dos principais objetivos de minha prática pedagógica (Fleuri, 2001). Entretanto, em muitas ocasiões, percebi que as tentativas de promover a participação ativa de estudantes no processo de planejamento, execução e avaliação do trabalho educativo no contexto escolar redundavam em reconfigurações de estratégias de sujeição, de hierarquização e de exclusão entre os estudantes. A partir dos anos de 1990, busquei compreender como e por que se constituem tais dispositivos de sujeição. Era necessário desconstruir tais dispositivos para sustentar iniciativas de democratização das relações pedagógicas. Encontrei em Michel Foucault indicações teóricas para compreender como funciona o poder disciplinar na escola. E isso permitiu entrever a possibilidade de resistência, que se exprime, por vezes, em ações de rebeldia individual ou coletiva. De modo particular, procurei entender como algumas práticas de transgressão realizadas por estudantes na escola são tradicionalmente transformadas em delinqüência e, com isso, subjugadas ou banidas. Em contrapartida, tentei entender de que forma, paradoxalmente, as iniciativas identificadas como "indisciplina" podem ser potencializadas como fatores de emancipação e de construção da democracia na escola.

Compreendi que, para o educador capaz de problematizar e dialogar, a rebeldia dos indisciplinados pode ser justamente um dos desafios que instigam a luta pedagógica constante, por articular criativa e prazerosamente interesses pessoais e coletivos corriqueiramente negados pelo sistema escolar. No âmbito da escola, as práticas de transgressão podem revelar seu potencial revolucionário, constituindo as bases para processos educativos que superem as relações de saber-poder disciplinar, na medida em que forem assumidas coletivamente (consolidando relações de reciprocidade e solidariedade) e ativamente (cultivando a diversidade de iniciativas e interações). E, para potenciar a rede viva de solidariedade, criatividade, liberdade e organização cultivada no cotidiano escolar, é preciso desvencilhá-la do caráter de transgressão e delinqüência que lhe é impingido pelo sistema examinatório de vigilância e sanção, desenvolvendo-se dispositivos de problematização, diálogo e cooperação entre os participantes do processo educacional.

Este artigo retoma sumariamente a explicação formulada por Michel Foucault das relações disciplinares de poder para indicar como os processos de resistência se podem configurar, ambivalentemente, como delinqüência ou rebeldia, como consolidação ou contestação da sujeição. Indica que os dispositivos de sujeição disciplinar estabelecem uma perspectiva unidirecional, monofocal, unidimensional e monocultural nas interações que as pessoas estabelecem entre si. Enuncia a necessidade de compreender e assumir a complexidade e a interculturalidade das relações educativas, para construir a democracia na escola. E indica, por fim, elementos das propostas pedagógicas de Paulo Freire e de Céléstin Freinet que apontam para a superação dos dispositivos disciplinares. Justamente porque promovem o reconhecimento e a potencialização da relação entre os diferentes sujeitos e entre seus respectivos contextos, favorecendo o desenvolvimento de infinitas e fluidas singularidades, produzindo os múltiplos e ambivalentes significados que tecem a trama viva do processo democrático na escola.



Relações disciplinares de poder

Michel Foucault (1977) chama de "disciplinas" aos métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo e a sujeição constante de suas atividades. Mas não são métodos repressivos. Porque, em vez de reduzir as forças e embotar as capacidades do indivíduo, a disciplina potencializa suas energias e aprimora suas aptidões, tornando-as úteis e produtivas. A disciplina adestra os indivíduos, articulando em sua atividade duas características: docilidade e produtividade.

O conjunto dessas estratégias de controle social que incidem sobre o corpo das pessoas configura o "poder disciplinar". Este se constitui na medida em que distribui os indivíduos no espaço, estabelece mecanismos de controle da sua atividade, programa a evolução dos processos e articula coletivamente as atividades individuais. Para isso, utiliza recursos coercitivos como vigilância, sanções e exames.

A disciplina distribui os indivíduos no espaço. A delimitação e a organização dos espaços no interior da instituição permitem o controle da localização e da circulação dos indivíduos. O espaço disciplinar é "analítico", porque é subdividido em compartimentos cujas funções são predefinidas. Isso permite "analisar" e controlar "automaticamente" as atividades que os indivíduos realizam. A determinação de lugares atende à necessidade não só de vigiar e de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço onde o trabalho dos indivíduos pode ser mais bem utilizado e controlado.

A subdivisão e a seriação do espaço permitem simultaneamente dois tipos de controle: por um lado, possibilita o controle das atividades de cada indivíduo; por outro, a ordenação do espaço permite o controle sobre o conjunto dos indivíduos, estabelecendo uma chave geral de correlação entre as pessoas que atuam simultaneamente no mesmo local.

A organização do espaço em celas, lugares e fileiras assume uma dimensão real e, ao mesmo tempo, ideal. De um lado, determina-se a disposição dos edifícios, das salas e dos móveis. De outro, essa arquitetura determina uma hierarquia entre as pessoas e entre os objetos. É o que foi denominado quadros vivos. O quadro é um processo de saber, ao permitir classificar e verificar relações. E uma técnica de poder, porque permite controlar um conjunto de indivíduos.

Numa instituição disciplinar, o controle das atividades dos indivíduos faz-se também mediante o condicionamento induzido pelo horário. Com o ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior pelo horário, a disciplina realiza uma elaboração temporal do ato individual que busca tornar a atividade humana cada vez mais eficiente. A disciplina requer esforço do indivíduo para que incorpore procedimentos precisos. Mas isso não significa que a aprendizagem disciplinar seja repressiva ou violenta. Não é violenta, porque respeita as condições objetivas e naturais do corpo. Não é repressiva, porque, pelo contrário, otimiza o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo. Aliás, a elaboração dos atos baseia-se no estudo minucioso do corpo, assim como dos instrumentos manipulados, de modo que estabeleça uma correlação ótima entre corpo e objeto. Seu objetivo é obter o melhor resultado com o menor desgaste possível. Nisso reside a eficiência da disciplina.

As disciplinas esquadrinham o espaço, decompõem e recompõem as atividades. Mas também são mecanismos que capitalizam o tempo e as energias dos indivíduos, de maneira que sejam susceptíveis de utilização e controle. E isso por quatro processos: primeiro, "divide-se a duração em segmentos" sucessivos ou paralelos, cada um devendo chegar a termo específico. Segundo, as seqüências são organizadas como sucessão de elementos simples, combinados conforme complexidade crescente. Terceiro, os "segmentos temporais são finalizados por uma prova". Quarto, estabelecem-se "séries temporais diferenciadas", de tal forma que se prescreve a cada indivíduo, "de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os exercícios que lhe convêm [...]. De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria" (Foucault, 1977, p. 143-144).

Tais mecanismos, que garantem a formação evolutiva de indivíduos diferenciados, constituem o exercício. Este é entendido como "a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas" (idem, p. 145-146). O exercício - característica das práticas militares, religiosas, universitárias - é assimilado na prática escolar pelo programa de ensino, que acompanha a criança até o termo de sua educação e implica exercícios de complexidade crescente, de ano em ano, de mês em mês.

Tanto no exército quanto na fábrica, a força da ação conjunta é resultado da cooperação entre as forças elementares dos indivíduos que a compõem. Constitui-se como um aparelho, em que o indivíduo se torna um elemento que se pode movimentar e articular com os outros. Da mesma forma, a série cronológica de uns deve ajustar-se ao tempo dos outros, de modo que as forças individuais sejam aproveitadas ao máximo e combinadas num resultado ótimo. Essa meticulosa combinação das forças exige um sistema preciso de comando, baseado em sinais definidos que provoquem imediatamente o comportamento desejado. Tais processos se realizam na tática.

A disciplina constitui-se, portanto, num conjunto de dispositivos de poder. Mediante esquadrinhamento do ambiente, compõe um quadro vivo que identifica e classifica os indivíduos. Estabelece manobras, impondo um ritmo coletivo obrigatório e adestrando os gestos individuais. Institui exercícios, que induzem a aprendizagem progressiva e uma perpétua caracterização do indivíduo. Desenvolve táticas que combinam calculadamente as forças individuais, de modo que se aprimorem os resultados coletivos. Tais procedimentos constroem o indivíduo, articulando-o num coletivo.

Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação de forças, organiza táticas. (idem, p. 150)

O poder disciplinar identifica e articula indivíduos, tornando-os controláveis e produtivos. Mas seu sucesso e seu funcionamento são devidos "ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame" (idem, p. 153).

O controle dos indivíduos numa instituição disciplinar é feito mediante sua observação constante. A organização do espaço deve proporcionar a vigilância constante dos subalternos pelos superiores.

O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar a tudo ver permanentemente. [...] O Panóptico (modelo de prisão) é a figura arquitetural dessa composição.1 [...] Onde cada ator (seja o louco, o doente ou o operário) encontra-se isolado, perfeitamente individualizado e constantemente visível e vigiado. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. (idem, p. 156-157)

O princípio de vigilância do Panóptico é duplo: do lado do vigia, tudo ver sem ser visto; do lado do cativo, ser constantemente observado, sem poder controlar os atos de seu observador. Assim, de um lado, a sensação de ser constantemente vigiado induz o cativo ao comportamento de subserviência. Do outro, o observador pode identificar, comparar e classificar o comportamento dos indivíduos.

A vigilância, todavia, não se realiza apenas por força da arquitetura. Ela concretiza-se por meio de uma rede hierárquica de relações. O organograma de uma escola, por exemplo, é semelhante a uma pirâmide: diretor, supervisor, professores, estudantes, articulados com os auxiliares administrativos, pedagógicos e de manutenção. O sistema de vigilância estabelece relações de controle recíproco entre todos os indivíduos pertencentes a uma instituição disciplinar. Esse sistema de censura multilateral obriga todos a adaptarem-se às normas, mediante a aplicação hierarquizada de sanções.

Os sistemas disciplinares funcionam com base num mecanismo penal subliminar, que qualifica e reprime comportamentos que escapam aos grandes sistemas de castigo. A função do castigo na relação disciplinar é principalmente a de reduzir os desvios. Por isso, privilegiam-se as punições em forma de exercício: repetição da tarefa incorreta de modo que intensifique o aprendizado. "Castigar é exercitar" (idem, p. 161), mas a sanção disciplinar funciona como um sistema duplo de gratificação-castigo. As recompensas estimulam os recalcitrantes a adequar-se às normas, da mesma forma que o medo do castigo reforça o comportamento dos diligentes.

Esse mecanismo qualifica gradualmente os desempenhos entre dois pólos opostos, o do bem e o do mal. Na escola, todos os comportamentos reduzem-se às boas ou más notas. As sanções instituem um jogo sutil e gradativo de promoção e de reprovação. O sistema de notas recompensa, promovendo a graus superiores; pune, rebaixando. Isso produz uma classificação gradual do desempenho dos estudantes, ativando processos que funcionam como um jogo de forças entre os indivíduos, induzindo-os a comparações e à hierarquização entre si, assim como à exclusão dos violadores da norma.

Em suma, a arte de punir, segundo Foucault, traz "a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares, compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, normaliza" (idem, p. 163).

A sanção normalizadora e a vigilância hierárquica materializam-se num dos mecanismos-chave das instituições disciplinares e burocráticas: o exame.

O exame é uma combinação de técnicas da vigilância hierárquica com as da sanção normalizadora. É um ritual que permite qualificar, classificar e punir os indivíduos. Configura uma relação de saber e de poder ao mesmo tempo. De saber, porque possibilita aos examinadores conhecer e classificar os que se submetem à observação. De poder, porque exige dos subalternos adequação às normas. Os superiores, assim, controlam (observam e determinam) o comportamento subalterno e, ao mesmo tempo, induzem-no a adaptar-se às normas pela sanção classificatória.

O poder disciplinar é eficaz porque é invisível. Mas impõe aos súditos uma visibilidade obrigatória. É o fato de sempre poder ser visto que induz o indivíduo a se sujeitar à ordem disciplinar. E o exame é a técnica que permite observar com rigor os subalternos.

O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. (idem, p. 171)

O exame articula e mobiliza os diferentes dispositivos constitutivos das relações de poder e de saber disciplinares. Mediante a aplicação sistemática desses mecanismos de controle, vai-se definindo a caracterização de cada aluno e a composição de um quadro classificatório que estabelece uma hierarquia de desempenhos individuais em cada turma, em cada série e em cada grau da unidade escolar que automaticamente sujeita todos ao controle impessoal e totalizador, constitutivo de saber e de poder.



Poder e resistência

Ao ver ainda hoje na escola características estruturais de séculos atrás, podemos nos perguntar: por que a escola continua a reproduzir esses mesmos mecanismos durante anos e anos, não obstante todas as tentativas de reformas?

Parece que os resultados das reformas acabam reforçando os mesmos problemas que as motivaram, como em um círculo vicioso. O pretenso fracasso da escola e de suas reformas - tal como questiona Foucault (1977, p. 239) a respeito da prisão - não faria parte de seu funcionamento?

Vários estudos sobre a escola a vêem como reprodução de um sistema maior, constituído pela organização econômico-política, particularmente o Estado, mesmo quando se identificam processos de resistência (Althusser, 1970; Giroux, 1983, entre outros). Foucault, porém, considera o poder como estratégia imanente às correlações de força, constituída pela in-teração instável e ambivalente de múltiplos agentes, que sustenta e ameaça cons-tantemente as fórmulas gerais de dominação (Foucault, 1988, p. 90). As mesmas correlações de força na prática escolar resultam em processos formadores de atitudes de docilidade e utilidade, assim como de iniciativas de criatividade e rebeldia.

Como é, então, que esse conflito entre disciplina e rebeldia se manifesta na vida da escola?

A vida quotidiana da escola parece, paradoxalmente, reproduzir dispositivos de poder e de resistência cuja lógica se reconstitui à medida que se reconfiguram suas estratégias e suas manifestações em contextos diferentes. A arquitetura e a rotina da escola, em diferentes formas, assumidas segundo os respectivos ambientes históricos e socioculturais, parecem incorporar normas e procedimentos combatidos em sucessivas tentativas de reforma do sistema escolar, mesmo com o impacto de profundas revoluções sociais. Todavia, ambivalentemente, nas fissuras das paredes divisórias e nos acasos que convulsionam as rotinas escolares, relações vivas e diferenciadas tentam emergir e vingar a qualquer momento.

Por exemplo: o espaço da sala de aula, encarado normalmente como uma cela de aula (Fleuri, 1990, p. 2), é ocupado pelos estudantes a partir de critérios e relações informais. Nas primeiras carteiras, em geral, os mais dedicados; atrás, os transgressores. Trata-se de um costume quase espontâneo que, embora por vezes se torne regra, reflete uma invisível rede de relações conflitante com as estratégias do disciplinamento escolar. Brandão (1986, p. 107-122) indica que, não obstante a divisão dos espaços e a imposição de rotinas, a vida real da sala de aula se processa como conflito entre o estabelecimento de normas e o desenvolvimento de estratégias individuais ou coletivas de transgressão. E que a trama viva de relações criada e recriada no quotidiano da sala de aula revela princípios e estratégias de resistência aos mecanismos disciplinares vigentes no sistema escolar.

Essa rede viva de relações surge e alastra-se clandestina, subterrânea e contínua, criando normas contrárias às regras institucionais e aos mecanismos disciplinares. Transpõe os limites e barreiras físico-espaciais. Estabelece ritmos e rotinas de ação coletiva invisíveis aos vigias. Desenvolve processos variados e conflitantes que interferem na formação da personalidade dos jovens. Articula acordos e cumplicidades subversivas ou paralelas à hierarquia burocrática. Tenta escapar à vigilância ou invertê-la. Desafia mecanismos de punição. Burla os exames.

A vitalidade transgressora instala-se como vírus na sala de aula, encontra um caldo fértil de cultura no recreio e pode contagiar todas as fímbrias do tecido escolar.

O recreio, do ponto de vista da ordem disciplinar, é um momento de repouso que permite aos estudantes recriar as energias necessárias para continuar a produzir nas atividades didáticas. Mas esse instante de liberdade é permitido apenas dentro de um espaço e durante um tempo suficientemente limitado para impedir o desenvolvimento de relações que escapem ao controle institucional.

Do ponto de vista dos estudantes, apresenta-se como uma lacuna na monotonia escolar. É uma brecha privilegiada, para serem realizados práticas prazerosas e criativas, uma vez que se pode sair da sala, encontrar-se com outros colegas, trocar notícias, estabelecer acordos, tomar lanche, ir ao banheiro, divertir-se... É nesse intervalo de afrouxamento disciplinar que se cultivam relações de acordos e conflitos autônomos entre os estudantes. É nesse espaço que surgem grupos e movimentos cujas atividades atravessam as hierarquias formais e criam canais de comunicação subliminar entre a escola e diferentes grupos da comunidade.

Também outros eventos, como reuniões de professores e responsáveis de estudantes, atividades do grêmio estudantil, reuniões sindicais de funcionários e professores, festas de diversos tipos, passeios, atividades extraclasse etc., se apresentam como espaços relativamente livres e, portanto, mais favoráveis ao desenvolvimento de relações criativas e solidárias.

Todavia, é preciso enfatizar que as práticas e as relações (que se desenvolvem seja em espaços formalmente mais controlados como na sala de aula, seja em espaços onde se permitem relações mais livres, como no recreio) são sempre contraditórias e paradoxais, na medida em que articulam dimensões e elementos opostos que se sustentam e se ameaçam mutuamente. Assim, as práticas de transgressão contrariam e, ao mesmo tempo, reforçam as medidas disciplinares: os estudantes, por exemplo, que circulam entre as carteiras ou não cumprem os horários só o fazem porque o espaço é esquadrinhado e horários são estabelecidos como normas. Ao serem punidos, tais comportamentos são qualificados como transgressão, reforçando o estabelecimento das normas. Mas tais medidas provocam novas reações, que podem gerar novas formas de resistência. Sujeição e transgressão, poder e resistência, portanto, só se configuram na relação recíproca, de combate e sustentação mútua.



Clandestinidade e rebeldia

Para Foucault (1988, p. 91-92), a codificação estratégica dos pontos de resistência que atravessam as estratificações sociais e as unidades individuais torna possível uma revolução. O principal desafio enfrentado por aqueles que ousam promover iniciativas e movimentos solidários autônomos no espaço escolar é escapar ao controle do sistema de normalização.

O submundo da prática escolar encontra-se prenhe de histórias e tradições jamais reconhecidas em nível de oficialidade (Manacorda, 1989, p. 210-211). No entanto, é justamente essa história clandestina que revela a origem da vitalidade que, conflitante com a disciplina escolar, traz um potencial transformador raramente enfatizado. O filme Sociedade dos poetas mortos2 narra a história de um grupo de estudantes que, num colégio tradicional, se reunia às escondidas numa caverna, de madrugada, para ler poesias, criar textos, fazer atividades proibidas pela instituição. Tais iniciativas de rebeldia, ao serem denunciadas e punidas mediante práticas examinatórias, têm um fim trágico de autodestruição dos próprios transgressores. Mantidas no nível da clandestinidade, as estratégias de transgressão não geram mudanças radicais.

Como, porém, liberar o potencial educativo das transgressões e articulá-lo em processos transformadores?

João Bernardo (1990, p. 317ss), ao analisar as formas de organização dos trabalhadores que surgem no sistema capitalista, distingue quatro tipos predominantes. Os três primeiros não levam a mudanças contextuais significativas. As formas de organização individuais e passivas incluem os modos práticos de poupar trabalho sem entrar em conflito aberto com o patronato (daí a passividade) e sem que essa atitude resulte de deliberação coletiva dos trabalhadores (daí seu caráter individual). Nas formas individuais e ativas, cada trabalhador arrisca o conflito aberto (o que significa seu caráter ativo), ainda que dissimulado, mas não atua de maneira conjunta e articulada com os outros companheiros (caráter individual). Nas formas coletivas e passivas, as ações são organizadas de modo coletivo, mas sob condução hierárquica de aparelhos burocráticos. Isso reforça a passividade dos trabalhadores, cuja ação acaba sendo dirigida de maneira centralizada e uniformizadora.

Já as formas de organização coletivas e ativas significam a articulação conjunta de diferentes iniciativas, em diferentes ritmos, que rompem a disciplina burocrática e manifestam a tendência prática ao controle dos processos coletivos. "Qualquer que seja o campo em que os conflitos se organizem de maneira coletiva e ativa, eles rompem, não negativamente, mas positivamente, com a disciplina capitalista, substituindo-a por um outro sistema de relacionamento social" (Bernardo, 1990, p. 323).

Assim, no âmbito da escola, as práticas de transgressão revelam seu potencial transformador, constituindo as bases para processos educativos democráticos que superem as relações de saber-poder disciplinar, na medida em que forem assumidas coletivamente (consolidando relações de reciprocidade e solidariedade) e ativamente (cultivando a diversidade de iniciativas e interações). E, para potenciar a rede viva de solidariedade, criatividade, liberdade e organização cultivada no cotidiano escolar, é preciso desvencilhá-la do caráter de transgressão e delinqüência que lhe é impingido pelo sistema examinatório de vigilância e sanção.

A construção desse mundo de delinqüentes no âmbito escolar torna-se pertinente à manutenção da ordem disciplinar. Não só porque segrega e exclui sistematicamente todo aquele que manifesta comportamento divergente, submetendo-o a vigilância constante e a punições exemplares, mas, sobretudo, porque impede o surgimento de formas amplas e manifestas de rebeldia, desvirtuando (ou transvertendo) iniciativas e movimentos de contestação procedentes (válidas) em formas fechadas e controláveis de transgressão. Assim, a manutenção sob controle penal de um meio transgressor, no âmbito da escola, torna-se um antídoto ao desenvolvimento de processos democráticos. A construção de processos participantes, dialógicos, críticos e cooperativos implica, pois, a desconstrução dos dispositivos disciplinares de poder.

Para desconstruir a sujeição

Para desconstruir as formas disciplinares de relação pedagógica que dificultam a construção de processos emancipatórios democráticos e cooperativos, é necessário, antes, saber por que nas organizações disciplinares as relações tendem a se configurar como processos de sujeição.

Na opinião de Foucault (1977, p. 167), o "olhar assegura a garra do poder que se exerce sobre os indivíduos". Trata-se do olhar que se exerce como vigilância. Um processo de observação constante do indivíduo que, por meio da análise e do esquadrinhamento do seu comportamento, segmenta-o em partes individualizáveis e comparáveis entre si, tornando-as redutíveis a um quadro classificatório. A classificação analítica serve como um filtro de percepção do outro que condiciona as atitudes e os comportamentos do sujeito observador, no sentido de exercer um domínio em relação ao sujeito observado. Ao mesmo tempo, a análise classificatória constitui-se, em nível de saber, num mecanismo de censura. Tende a determinar o âmbito e o tipo de respostas permitidas ao outro, invisibilizando ou excluindo toda forma de reação que escape aos parâmetros estabelecidos. Ao mesmo tempo, em nível de poder, forja instrumentos de coação. Mediante as sanções, reforça determinados comportamentos (mediante prêmios) e desencoraja outros (mediante castigos).

Esses mecanismos conjuminam-se no olhar examinatório, uma estratégia de relação que se materializa em múltiplas situações institucionais, desde os exames finais até os pequenos olhares de censura que povoam nossas relações cotidianas na escola. Vigilância, sanção e exame são recursos para o bom adestramento, isto é, para induzir os indivíduos a moldarem-se a relações disciplinares (individualizantes, classificatórias e hierarquizantes) em que se formam indivíduos produtivos, mas dóceis.

Assim, o olhar disciplinar, a vigilância hierárquica, torna-se uma relação de controle unidirecional, porque admite apenas o olhar para o outro como objeto, mas não admite o ser observado pelo outro. O tipo de olhar que funda a relação disciplinar exclui não apenas a reciprocidade do olhar; privilegia de tal maneira um tipo objetivista de percepção visual que reduz ou exclui outros possíveis significados do olhar, tal como o sentido de curiosidade, acolhimento, sedução ou valorização do outro.

Além disso, a vigilância hierárquica é um sistema de controle baseado principalmente no sentido da visão. Constitui, assim, uma estrutura de poder e de saber incapaz de incorporar as várias dimensões das interações humanas, constituídas pelas linguagens da audição, do sabor, do odor, do tato, favorecendo um tipo de relação, por assim dizer, unisensorial.

O olhar objetivista, enquanto olhar hierárquico ou "super-visão", é também uma relação uni-intencional, pois focaliza só o que está pontualmente posto e iluminado (e, por isso, é considerado positivo). É incapaz de considerar como reais (porque invisíveis a esse tipo de olhar) os vazios, os escuros, que possibilitam e constituem o espaço do inter, ou seja, das relações.

A analogia do poder-saber disciplinar (hierárquico, formal e positivo) como um tipo de olhar unidirecional, unisensorial e unifocal constitui-se numa base de interpretação, a partir da qual é possível conceber o salto de dimensão, para além das relações disciplinares na educação.

Tal ressignificação do processo educativo implica, em primeiro lugar, constituir relações de reciprocidade entre sujeitos educandos-educadores no processo de conhecimento. Superar a unidirecionalidade da relação de vigilância hierárquica - ou da "educação bancária" (Freire, 1974) - implica potencializar a reciprocidade da relação dialógica e cooperativa entre as pessoas. Ao mesmo tempo em que uma pessoa ensina, também aprende com o outro. Ao mesmo tempo em que um sujeito observa, também é observado pelo outro, influenciando e sendo influenciado em seus processos afetivos, intelectuais, decisórios, de ação, de interação, de comunicação. Na medida em que, no processo educativo, as pessoas constituem relações mútuas de saber e de poder, potencializam interações críticas e criativas, superando a sujeição produzida pelos dispositivos disciplinares.

Em segundo lugar, a reciprocidade dialógica só se constitui na medida em que se potencializam as múltiplas dimensões da existência e da comunicação humana. A interação humana não se reduz à comunicação visual, ao olhar e ser olhado. A interação constitui-se, na dimensão comunicacional, ao potencializar simultaneamente a reciprocidade das múltiplas formas e linguagens de comunicação verbal e corporal. E, nas dimensões afetivas e mentais, ao acolher e ser acolhido, ao oferecer e ao interpelar, ao compreender e ser compreendido. Pelo fato de utilizar, de modo simultâneo e articulado, diferentes linguagens, torna possível a reciprocidade na comunicação entre diferentes pessoas. O falar e o escutar podem parecer uma relação unidirecional entre um sujeito ativo e outro passivo, se se considerar apenas a dimensão da comunicação oral-auditiva. Mas, ao considerarem-se as múltiplas linguagens e dimensões comunicacionais, percebe-se que, aos potencializá-las, os diferentes interlocutores participam ativamente e reciprocamente da sustentação do contexto comunicativo. A comunicação, por ser multidimensional e complexa, é essencialmente dialógica.

Em terceiro lugar, a superação do dispositivo disciplinar do olhar unidirecional implica superar seu caráter unifocal. O professor, ao examinar o desempenho do estudante, focaliza e valoriza apenas aspectos relacionados a determinados objetivos preestabelecidos, ignorando todos os outros aspectos que compõem seu contexto. As manifestações diferentes do exigido são até mesmo condenadas como desviantes ou erradas. A relação dialógica, ao contrário, implica considerar os contextos constitutivos dos múltiplos significados desenvolvidos pelas ações e interações das pessoas. Torna-se necessário, para isso, desenvolver a capacidade de percepção e compreensão do contexto (Severi & Zanelli, 1990) e de seus processos de transformação. É a partir dos contextos sociais, subjetivos, intersubjetivos, históricos, culturais, ambientais que as ações se constituem e adquirem sentidos. "Sem contexto, palavras ou ações não têm qualquer significado" (Bateson, 1986, p. 23). Apreender o contexto requer um salto lógico, no sentido de identificar não apenas os objetos, mas simultaneamente suas inter-relações.

Reconhecer a multiplicidade de contextos (subjetivos, interpessoais, sociais, culturais, econômicos, políticos, ecológicos) desenvolvidos pela interação de diferentes sujeitos nas relações e nos processos educativos implica percebê-los e orientá-los segundo uma lógica (ou paradigma epistemológico) capaz de compreender a relação da unidade do conjunto com a diversidade de elementos que o constituem.

O entendimento da educação como um processo interativo, polissêmico, multidimensional, crítico, criativo remete-nos à perspectiva complexa formulada por Gregory Bateson, com sua teoria de mente (mind). Mente é uma "estrutura que coliga", "um padrão que conecta" diferentes seres e processos.

À luz da concepção de mente desenvolvida por Bateson, podemos entender: que o processo educativo é constituído por pessoas que interagem; que a interação é acionada pela diferença, sendo esta produzida pela iniciativa concomitante de múltiplos sujeitos; que a diferença codificada produz novas diferenças, em cadeias recursivas de informações, segundo padrões de conjunto que constituem a singularidade de cada sujeito em relação (idem, p. 99-100). A cultura, trama sistêmica de padrões de significados (Geertz, 1978) - produzida, sustentada, constantemente modificada pelas próprias pessoas em interação - configura os sentidos para cada ato, palavra ou informação elaborada pelas pessoas em relação.

Nesse sentido, a transformação dos dispositivos disciplinares de saber-poder e a instituição de processos educativos de caráter dialógico - como os que são propostos por Paulo Freire e Céléstin Freinet (Fleuri, 1996) - constitui um campo de aprendizagem de segundo nível, na medida em que implica desenvolver contextos educativos que permitam a articulação entre diferentes contextos subjetivos, sociais e culturais. Trata-se de compreender e construir processos educativos em que diferentes sujeitos constituem sua identidade, elaborando autonomia e consciência crítica na relação de reciprocidade (cooperativa e conflitual) com outros sujeitos, criando, sustentando e modificando contextos significantes que interagem dinamicamente com outros contextos, criando, sustentando e modificando metacontextos comunicacionais.

Tal concepção de educação traz a necessidade de repensar e ressignificar a concepção de educador. O processo educativo consiste na criação e no desenvolvimento de contextos educativos e não simplesmente na transmissão e assimilação disciplinar de informações especializadas. Ao educador compete, pois, a tarefa de propor e sustentar mediações pedagógicas. Ou seja, compete a ele propor estímulos (energia colateral) que ativem as diferenças entre os sujeitos e entre seus contextos (histórias, culturas, organizações sociais...), de modo que desencadeiem a elaboração e a circulação de informações (versões codificadas das diferenças e das transformações) que se articulem em diferentes níveis de organização (seja em âmbito subjetivo, intersubjetivo, coletivo, seja em níveis lógicos diferentes).

Educador, nesse sentido, é propriamente um sujeito que se insere num processo educativo e interage com outros sujeitos, dedicando particular atenção às relações e aos contextos que vão se criando, de modo que contribua para a explicitação e a elaboração dos sentidos (percepção, significado e direção) que os sujeitos em relação constroem e reconstroem. Nesses contextos, o currículo e a programação didática, mais do que um caráter lógico, terão uma função ecológica. Sua tarefa não será meramente configurar um referencial teórico para o repasse hierárquico e progressivo de informações. Sua competência será prever e preparar recursos capazes de ativar a elaboração e a circulação de informações entre sujeitos, de modo que se auto-organizem em relação de reciprocidade entre si e entre seus respectivos ambientes.

O processo educativo constitui-se, assim, simultaneamente, na perspectiva dos sujeitos singulares, como relação entre pessoas mediatizadas pelo mundo, como afirma Paulo Freire. Ao mesmo tempo, na dimensão contextual, configuram-se relações entre mundos (culturais, sociais, ambientais) que se transformam - ou se educam - reciprocamente, na medida em que são mediatizados pelas pessoas que interagem dialogicamente.

Perspectivas de construção da democracia nos processos educacionais

A construção de processos democráticos na escola implica justamente desenvolver dispositivos educacionais dialógicos que superem os mecanismos de sujeição disciplinar.

[...] em boa medida, todo o esforço, às vezes inteligente, outras desesperado, das pedagogias modernas, não quer mais do que aprender, com a sabedoria dos transgressores, os princípios e estratégias de relações entre as pessoas que tornem o domínio da norma escolar pelo menos suportável. (Brandão, 1986, p. 122)

Nessa perspectiva, Céléstin Freinet e Paulo Freire, entre outros educadores e teóricos da educação, codificam revolucionariamente as estratégias de resistência aos processos de saber-poder disciplinar nas práticas educativas. São dois educadores que, embora contemporâneos, atuaram em contextos sociais bastante diversos (França e Brasil). Freinet preocupou-se sobretudo com a educação escolar de crianças de 0 a 14 anos. Paulo Freire ocupou-se inicialmente de adultos nos chamados "círculos de cultura", que pretendiam justamente escapar à escolarização tradicional. Mas suas propostas apresentam pontos em comum. Ambos entendem que a educação não é politicamente neutra. Ambos recusam a manipulação do ser humano. Ambos acreditam que a ação pedagógica, apesar de todos os seus condicionamentos, seja fundamental para o processo de libertação humana e de transformação social.

Nessa direção, ambos dão a palavra ao povo, para falar de sua vida, como passo fundamental para o desenvolvimento da autonomia e para o engajamento na transformação do mundo. A "expressão livre" foi a grande descoberta de Freinet para dar a palavra à criança. Pelo tatear experimental e pela possibilidade de relatar as próprias vivências, as crianças desenvolvem sua autonomia, seu juízo crítico e sua responsabilidade. Para Paulo Freire, dizer a palavra é transformar o mundo, pois, ao dizer a própria palavra, as pessoas começam a construir conscientemente seus próprios caminhos.

Tanto Freinet quanto Freire defendem o diálogo e a cooperação entre sujeitos na busca de problematizar, compreender e transformar a realidade. Paulo Freire focaliza prioritariamente o trabalho educativo ligado à ação e à organização sociopolítica do mundo adulto. Freinet enfatiza a transformação do ambiente escolar mediante o desenvolvimento dos métodos ativos, da organização cooperativa e dos canais de comunicação com o meio natural e social.

Entre afinidades e diferenças, as propostas pedagógicas de Freinet e Freire complementam-se. Paulo Freire, em suas práticas iniciais de "conscientização", desenvolveu o método de investigação, codificação e decodificação temática (Freire, 1975, p. 89-141). Mas alertou sobre os perigos da tendência à mitificação de métodos e técnicas, à absolutização destas quando se perdem de vista as finalidades e os sujeitos a que estão ligadas. Por isso, enfatizou a necessidade de desenvolver o diálogo e a interação entre educadores-educandos no empenho de problematizar e de transformar o mundo. Complementarmente, Freinet, constatando que muitos professores militantes políticos adotavam na sala de aula métodos e técnicas de dominação totalmente em discordância com a sua opção ideológica de liberdade e solidariedade, salienta a importância da organização material técnica e pedagógica. Nesse sentido, a preocupação com a clareza política das finalidades do processo educativo, tão enfatizada por Freire, encontra nas técnicas propostas por Freinet grandes possibilidades de mediação com a prática de educação escolar.

A proposta de Freinet - que visa à formação de pessoas produtivas (tal como o poder disciplinar) mas criativas (contrariamente ao poder disciplinar, que condiciona as pessoas à submissão) - aponta formas de organização que rompem os mecanismos disciplinares.

A organização disciplinar do espaço (mediante a cerca, o quadriculamento, a fila, que transformam o coletivo num quadro vivo, totalmente observável e controlável) identifica-se com o auditorium-scriptorium da escola tradicional. Contra esse modelo funcional da escola, Freinet propõe que ela seja uma oficina de trabalho simultaneamente comunitária e especializada, que exige uma nova estrutura arquitetural. Nesta, prioriza-se o meio natural, ao qual se articulam os edifícios. Na escola primária, propõe-se um modulo arquitetural básico compondo uma sala comum, onde as crianças poderão reunir-se para os trabalhos coletivos, com oficinas internas especializadas e oficinas externas especializadas (jardim, horta, pomar e a criação de animais). Nesse espaço escolar, o controle das atividades tende a ser assumido pelos grupos de estudantes, em função de seus interesses e planos, subvertendo-se o mecanismo de vigilância hierárquica.

Também o controle disciplinar da atividade baseado no horário e no treinamento é superado na medida em que se oferecem às crianças possibilidades de trabalho e de cooperação de acordo com seus interesses e seus ritmos singulares (Freinet, 1973, p. 82). A superação da prática do exercício disciplinar (que capitaliza e classifica as energias do indivíduo de modo que se tornem utilizáveis e controláveis), assim como da organização tática da escola como um aparelho (que articula as atividades individuais mediante comandos padronizados), pode ser vislumbrada no trabalho pedagógico com o que Freinet chama de complexos de interesses. Estes são suscitados pelos contatos diretos com o meio ambiente, por meio das oficinas na escola e do conhecimento experimental dos estudantes. Entre as múltiplas motivações vitais, as crianças escolhem trabalhar alguns aspectos de maneira articulada com os colegas.

Na elaboração de um jornal (idem, p. 105-131), por exemplo, o grupo escolhe um dos textos produzidos por uma das crianças. A seguir identifica jogos, trabalhos, conhecimentos, atividades possíveis de serem elaborados. Cada um escolhe fazer o que mais lhe convier, traça um plano pessoal de trabalho e o articula com os dos colegas num plano geral. No desenvolvimento das atividades, cada um segue seu próprio ritmo e interage livremente com os colegas. Os trabalhos produzidos são apresentados, discutidos, divulgados.

Paulo Freire, por sua vez, desenvolve o processo de investigação temática:

Os temas se encontram, em última análise, de um lado, envolvidos; de outro, envolvendo as situações-limite, enquanto as tarefas em que eles implicam quando cumpridas constituem os atos-limite. Estes temas se chamam geradores porque, qualquer que seja a natureza da sua compreensão com a ação por eles provocada, contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas. (Freire, 1975, p. 110)

Por isso, o tema que se coloca à discussão no contexto pedagógico foi chamado por Paulo Freire de tema gerador, uma vez que a abordagem de um tema gera a discussão de outros temas correlatos. Entretanto, "o tema gerador [...] só pode ser compreendido nas relações homem-mundo" (idem, p. 115). Daí que a explicitação do tema gerador deve focalizar o falar, o pensar e o agir das pessoas sobre sua realidade. Por isso mesmo, a investigação temática precisa ser feita por sujeitos em diálogo, no qual se manifeste a ação-reflexão deles sobre a situação em que se encontram sendo.

Nesse processo de ação-reflexão dialógica, a articulação coletiva é construída não de maneira homogênea, mas integrando e valorizando criativamente as peculiaridades de cada um. Com isso, formam-se pessoas economicamente produtivas, mas também politicamente capazes de autonomia pessoal e coletiva. Segundo Paulo Freire, uma das necessidades inerentes à construção da democracia no processo educacional é problematizar constantemente, a partir das experiências e da ação dos educandos, a situação em que vivem, assim como o conhecimento a ser apropriado e elaborado. Desse modo, no processo educacional explicitam-se os desafios que a realidade apresenta, reclamando dos sujeitos desse processo a ação-reflexão no sentido de buscar soluções. Pode-se dizer que a conscientização se processa como diálogo centrado em problemas da realidade.

Nesse contexto pedagógico, a vigilância panóptica (onde o vigilante observa e controla a todos sem ser controlado) é, para Freinet, subvertida por práticas de observação e discussão participativa, como o mural de avaliação, as assembléias do grupo. A punição torna-se geralmente inaplicável. "A crítica coletiva, o reconhecimento das faltas, o sentimento comunitário, o desejo de melhorar mostram-se em geral suficientemente eficazes. A única sanção normal é geralmente reparar o mal feito" (Freinet, 1973, p. 96). E o sistema de exames tende a ser substituído por procedimentos de avaliação e auto-avaliação pelo plano de trabalho, em que se busca evitar a classificação, a competição e a submissão (idem, p. 138-141).

Nas propostas pedagógicas de Freire e de Freinet, podemos identificar o confronto com os mecanismos disciplinares, na tentativa de promover processos criativos e produtivos de educação escolar. Todavia, tais propostas não se reduzem a um mero conjunto de técnicas ou métodos pedagógicos inovadores a serem aplicados na escola. Seria ingenuidade pretender adotar as propostas pedagógicas de Freinet simplesmente mediante a construção ou adaptação dos edifícios e dos espaços escolares à estrutura de salas comuns e oficinas especializadas (interiores e exteriores) ou adaptando os horários, métodos e programas a uma dinâmica mais criativa e participativa. Da mesma forma, o diálogo problematizador em torno dos temas geradores proposto por Paulo Freire não se realiza de modo espontâneo nem mecânico, pois essas intenções e metodologias podem ser facilmente assimiladas a uma estrutura disciplinar (que hierarquiza e submete os indivíduos) se as opções pessoais e a correlação de forças num determinado contexto favorecerem a hierarquização e sujeição nas relações institucionais. Da mesma forma que, numa instituição disciplinar, se desenvolvem paradoxalmente relações e opções de resistência que apontam outras formas de organização e instigam mudanças estruturais.

Portanto, o mais importante no trabalho de construção da democracia na escola é assumir criativamente as relações vivas, enfrentar corajosamente o jogo de forças de que participamos, criando e recriando criticamente, passo a passo, os meios que sustentem relações de autonomia e de reciprocidade e, ao mesmo tempo, neutralizando os que produzem isolamento e submissão.


REINALDO MATIAS FLEURI, doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com pós-doutorado na Universitá di Perugia (Itália) e na Universidade de São Paulo (USP), é professor titular no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Participa desde 1992 do Grupo de Trabalho de Educação Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd). É pesquisador e consultor do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pesquisador colaborador do Centre de Recherche sur l'Intervention Éducative (CRIE, Canadá) e presidente da Association pour la Recherche Interculturelle (ARIC). Coordena o Núcleo de Pesquisa Mover - Educação Intercultural e Movimentos Sociais, na UFSC. Entre seus livros publicados destacam-se: Universidade e educação popular (Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2001); Educar para quê? (9. ed. São Paulo: Cortez, 2001); Educação intercultural: mediações necessárias (Rio de Janeiro: DP&A, 2003); Entre disciplina e rebeldia na escola (Brasília: Liberlivros, 2008). Coordena atualmente o projeto integrado de pesquisa "Educação intercultural: desconstrução de subalternidades em práticas educativas e socioculturais", financiado pelo CNPq. E-mail: [email protected]
* Esta temática é discutida de modo mais amplo em Fleuri (2008).
1 "Seu princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia" (Foucault, 1977, p. 156).
2 Dead Poets Society. Direção de Peter Weir. Estados Unidos: Buena Vista Pictures, 1989. 129 min. Color, son. 35mm. Sinopse: Em 1959, na Welton Academy, uma tradicional escola preparatória, um ex-aluno (Robin Williams) torna-se o novo professor de literatura, mas logo seus métodos de incentivar os estudantes a pensar por si mesmos criam um choque com a ortodoxa direção do colégio, principalmente quando ele fala aos estudantes sobre a Sociedade dos Poetas Mortos.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782008000300005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista Brasileira de Educação



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