Publicação simultânea de biografia escrita pela viúva e glossário que traz conceitos explorados pelo educador revelam pensamento do intelectual pernambucano.
por Helenice C. R. Fester
Ana Maria Araújo Freire dá a público seu mais recente livro, Paulo Freire: uma história de vida, biografia que eu diria recifense, pernambucana e, portanto, profundamente universal, como afirma o biografado a respeito dele mesmo.
Recifense porque sem pressa, prolixa e freiriana, porque comunica-se com o leitor por meio da linguagem, em sua maior parte coloquial, que se quer horizontal para assim criar a igualdade, porque tudo é vida e tudo deve ser alegria fruto da afetividade.
Pernambucanos ambos, biógrafa e biografado; ela, doutora em educação, pela PUC-SP, onde também lecionou. Mais um título dela, o oitavo livro, salvo erro, após a morte de Paulo Freire (1921-1997) e sobre ele ou sobre seus escritos ou idéias. Pois Ana Maria ou Nita é também sua viúva, foram casados nos dez últimos anos da vida de Freire. Escreve porque a saudade de Paulo "permanece em mim como um sentimento que dá sentido à minha vida, porque a saudade do outro nada mais é do que uma forma diferente de sua presença mesma".
Nita harmoniza-se, portanto, enquanto autora, como intelectual que é e como segunda mulher e viúva do homenageado. Isto porque o livro é uma bela homenagem, objetiva na medida do possível, uma fonte expressiva, entre os muitos livros dedicados a Paulo Freire, em especial o organizado por Moacir Gadotti (Paulo Freire - Uma biobibliografia, 1996).
O livro contém farto e rico material documental, entre os quais a transcrição do Inquérito Policial Militar da 2a Companhia de Guardas do Recife, presidido pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina, a quem Paulo Freire respondeu, preso, em 1964. Documento denso e representativo do descaminho que foi a ditadura militar.
A transcrição de um texto de Frei Betto também me chamou a atenção: "Graças às suas obras, professor, descobriu-se que os pobres têm uma pedagogia própria. Eles não produzem discursos abstratos, mas plásticos, ricos em metáforas. Não moldam conceitos, contam fatos. Foi o senhor que nos fez entender que ninguém é mais culto do que outro por ter freqüentado a universidade ou apreciar as pinturas de Van Gogh e a música de Bach. O que existe são culturas paralelas, distintas, e socialmente complementares. O que sei eu dos circuitos eletrônicos deste computador no qual escrevo? O que sabia Einstein sobre o preparo de um bom feijão tropeiro? No entanto, a cozinheira pode passar a vida sem nenhuma noção das leis da relatividade. Mas Einstein jamais pôde prescindir dos conhecimentos culinários de quem lhe preparava a comida".
E, parágrafos depois, continua o frade dominicano: "O senhor nos ensinou que ninguém ajuda ninguém, mas ajuda o outro a aprender. Graças ao seu fórceps pedagógico, extraiu a pedagogia do oprimido e sistematizou-a em suas obras. Pois o arrancou da percepção da vida como mero fenômeno biológico para a percepção da vida como processo biográfico. Os pobres fazem história, como demonstram os quarenta anos de atuação dos movimentos sociais que levaram Lula à presidência. Foi a sua pedagogia de conscientização (na verdade, a dos pobres que, repito, o senhor sistematizou) e que possibilitou a organização e a mobilização dos excluídos. Deu consistência dinâmica às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), aos movimentos populares, às oposições sindicais, aos sindicatos combativos, às ONGs, aos partidos progressistas".
Nita transcreve entrevistas do próprio Paulo, entre elas uma em que diz: "Pra mim, o \\'eu sou, logo existo\\', há muito tempo sumiu. \\'Nós somos, logo existimos\\'. Aí, esta é que é a formulação, \\'nós existimos, fazemos coisas, por isso somos, entende?"
Acompanha o lançamento do livro um bem feito glossário dos Conceitos de educação em Paulo Freire, da editora Vozes, e de autoria de Maria Lúcia Marcondes Carvalho Vasconcelos e Regina Helena Pires de Brito, com diversos colaboradores. No verbete Cidadania, por exemplo, encontramos em seu livro Pedagogia dos sonhos possíveis, póstumo e também organizado por Nita Freire, que remete a essa idéia de solidariedade e do fazer coletivo da construção histórica tão bem analisados por Boff e frei Betto, esta fala de Paulo Freire: "A história não é feita de indivíduos, ela é socialmente feita por nós todos e a cidadania é o máximo de uma presença crítica no mundo da história por ela narrada".
Ambos os livros me alegram por me fazerem perceber na minha própria prática de ensino a presença de Paulo Freire. A profissionalização do professor, uma das minhas principais preocupações, deverá estar inserida numa prática reflexiva e na participação crítica, fios condutores da formação docente, ancorados no desenvolvimento de competências disciplinares, transversais e profissionais, libertando os profissionais do trabalho rotineiro e levando-os a construir suas próprias iniciativas. Competência aqui entendida como a capacidade de mobilizar conhecimentos em situações complexas, nas quais é preciso tomar decisões e resolver problemas, com rapidez e segurança. Este o dilema atual: recriar soluções mobilizadoras de forças sociais capazes de reverter o processo de exclusão social e escolar. Ao educador cabe um papel fundamental: suscitar o inconformismo dos que teimam em fazer da política um instrumento a serviço da maioria, e reencontrar a solidariedade, semente invisível que alimenta a prática cotidiana.
Para isso, todo o pensamento de Paulo Freire sobre a educação, presente no Glossário mas, especialmente e com minúcias, nessa bela biografia com que Ana Maria Araújo Freire nos presenteia, é estímulo indispensável e fundamental. E também as advertências dele, uma das quais: "Um dos riscos que a gente pode cometer é cair no preto-branco, e reduzir a realidade toda a uma coisa ou a outra, quando ela não é. A realidade é arco-íris, isso seria um dado. Claro que a gente tem que ter uma certa opção dentro deste arco-íris...".
Sobre livro
Paulo Freire: uma história de vida(VILLA DAS LETRAS; 655 PÁGS.; R$69)Conceitos de educação em paulo freire -glossário (VOZES; 200 PÁGS.; R$25 )
Helenice C. R. Fester é doutora em História Social e professora da PUC-SP.
Revista Historia Viva
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