Aprendizagem e Cultura Digital
Ensino

Aprendizagem e Cultura Digital


David Buckingham
Os meios digitais têm enorme potencial para o ensino, mas é difícil realizar esse potencial se eles são considerados apenas tecnologias, e não formas de cultura e comunicação


Com freqüência se diz que a tecnologia está transformando profundamente a educação. Ela desafia as definições existentes de conhecimento, oferece novas maneiras de motivar aprendizes relutantes e promete incessantes oportunidades de criatividade e inovação. Há uma longa história de afirmações pretensiosas como essas, que existem desde muito antes do advento dos computadores. Os primeiros defensores do uso de filmes e da televisão na educação, por exemplo, fizeram previsões similarmente fantásticas de que esses meios trariam mudanças profundas na natureza da aprendizagem - e, sem dúvida, de que a própria escola em breve se tornaria redundante.

O atual interesse em inserir computadores nas salas de aula é motivado, sobretudo, por empresas comerciais em busca de novos e previsíveis mercados para seus produtos e por governos aparentemente desesperados para resolver o que consideram problemas da educação pública. Ambos tipicamente advogam uma forma de determinismo tecnológico e uma crença no poder avas­salador da tecnologia. Tal fato, por sua vez, resulta em uma visão instrumental do papel da tecnologia na educação. Ela é vista como um mecanismo neutro de transmissão de informações, e a própria informação é considerada uma espécie de objeto desencarnado que existe de modo independente dos interesses humanos ou sociais. Isso acarretou uma negligência de questões educacionais básicas, não apenas sobre como ensinamos com tecnologia, mas também sobre o que as crianças precisam saber a respeito dela.

A despeito do que dizem os comerciantes, são cada vez mais numerosas as pesquisas que sugerem que o impacto da tecnologia na prática cotidiana dos professores é bastante limitado. Muitos professores resistem ao uso da tecnologia, não por serem antiquados ou ignorantes, mas porque reconhecem que ela não contribui para que eles alcancem seus objetivos. Existem muito poucas evidências convincentes de que o uso da tecnologia em si aumenta o desempenho dos alunos. É claro que alguns professores estão usando a tecnologia de modo bastante criterioso e criativo; porém, na maio­ria dos casos, o uso de tecnologia nas escolas é estreito, sem imaginação e instrumental.

Confrontados com tais evidências, os defensores da tecnologia tendem a dizer que ainda é cedo e que mudanças reais e duradouras virão em breve. Contudo, a tecnologia digital está nas escolas há mais de 25 anos; a prometida revolução ainda não aconteceu, e existem poucos motivos para acreditar que ela acontecerá tão cedo. Não obstante, minha posição não é de total oposição à tecnologia. Creio que ocorreu uma polarização inútil no debate entre os entusiastas ingênuos que vêem a tecnologia como a salvação da educação e os pessimistas lúgubres que alegam que estamos rumando para o inferno tecnológico. Chegou, com certeza, a hora de mudar a abordagem.

O novo divisor digital
Como professor de mídia, um dos meus maiores interesses é a relação entre as culturas e práticas cotidianas das crianças fora da escola e aquelas que elas encontram na sala de aula. Em relação à tecnologia digital, existe hoje uma lacuna significativa - e talvez crescente - entre o que as crianças fazem na escola e o que faz por bigwigmedia/www.em em suas horas de lazer. Isso é o que chamo de novo divisor digital. Apesar do maciço investimento em tecnologia nas escolas e do grande entusiasmo que o tem acompanhado, grande parte do que acontece na educação permanece relativamente intocado pela tecnologia. Fora da escola, no entanto, as crianças estão tendo uma infância cada vez mais saturada de mídia. O seu acesso à tecnologia de mídia aumentou significativamente, e elas estão participando de uma cultura midiática cada vez mais diversa e comercializada - cultura que algumas pessoas têm tido dificuldade para compreender e controlar.

Não estou sugerindo que o antigo divisor digital tenha sido suplantado. Ao contrário, ainda existem significativas desigualdades tanto no acesso à tecnologia quanto nas qualificações e competências que são necessárias para usá-la - desigualdades que as escolas certamente devem abordar. Na verdade, devemos ter cautela com a retórica fácil da chamada "geração digital", ou seja, a idéia de que os jovens estão ativamente se comunicando e criando on-line, já que possuem uma espontânea afinidade com a tecnologia que os mais velhos não têm.

Quando observamos o que as crianças estão fazendo com essa tecnologia fora da escola, fica claro que ela é basicamente um meio para a cultura popular. As crianças que têm acesso a computadores em casa estão usando-os para jogar, surfar nos sites de entretenimento na internet, trocar mensagens instantâneas, participar de redes sociais, baixar e editar vídeos e músicas. Além de tarefas funcionais, como dever de casa, muito poucas estão usando a tecnologia para algo que se assemelhe à aprendizagem escolar. Em contraste, o que elas estão fazendo com a tecnologia nas escolas é muito limitado. A disciplina de tecnologias da informação e comunicação (TIC) trata basicamente de processamento de texto, planilhas e manejo de arquivos - na verdade, o currículo do Microsoft Office. Ela oferece pouco mais do que treinamento de habilidades funcionais sem contexto. Isso não quer dizer que tais habilidades não possam ser importantes para algumas pessoas em determinada etapa de suas vidas, ou mesmo que elas venham a fazer um uso particularmente eficiente desses recursos, embora seja questionável se é realmente necessário que as crianças aprendam isso na escola.

Crescem as evidências de que, em geral, elas consideram o uso da tecnologia na escola aborrecido e pouco imaginativo. Algumas se resignam a isso, identificando-o como um fato inevitável da vida; outras estão claramente descontentes e algumas opõem ativa resistência. Especial­mente para aqueles que estão mais envolvidos com a tecnologia em sua vida diária e que podem optar por empregos com foco na tecno­logia, o uso de tecnologia na escola é visto com freqüência como ir­re­le­vante. Isso não é de surpreender. Historicamente, o ensino escolar tem-se caracteriza­do por uma absoluta rejeição da cultura popular cotidiana dos alunos - e, de fato, existe uma espécie de paranóia sobre a perda de controle do que acontece quando a cultura popular entra no espaço da escola. Nesse sentido, o que estou chamando de novo divisor digital simplesmente reflete uma disjunção histórica mais ampla entre a cultura de lazer cotidiano dos jovens e a cultura da escola.

Abordando o novo divisor digital
Há algo que podemos fazer a respeito dessa situação? E será que deveríamos fazer? Alguns argumentariam que o que as crianças fazem fora das escolas não é uma preocupação adequada dos professores: elas já têm cultura popular suficiente em seu cotidiano, então por que haveriam de pensar sobre isso na escola, quanto mais estudar sobre isso? Muitos diriam que o que acontece na escola é necessariamente diferente do que acontece fora dela: a escolarização é uma forma de indução ao conhecimento de status superior e a aprendizagem na escola é necessariamente formal, de um modo que a aprendizagem fora da escola não é. Ainda que eu tenha certa simpatia por esse argumento, ele obviamente vê pouco espaço para mudanças, pois parece presumir que o conhecimento de status superior é algo garantido e aceita como dadas as distinções entre cultura superior e cultura popular, as quais, na realidade, são histórica e culturalmente relativas.
Penso que as escolas têm a responsabilidade de avaliar as realidades da vida das crianças fora da escola, o que obviamente inclui seu envolvimento com a cultura popular e o emprego que fazem da tecnologia no lazer. Entretanto, precisamos ser cautelosos com uma resposta superficial. Por exemplo, alguns desejam enal­tecer o envolvimento das crianças com os jogos de computador. Eles assinalam, muito corretamente, que jogar pode envolver todo um espectro de processos de aprendizagem complexos. Contudo, afirmam que é aí que a aprendizagem mais significativa está acontecendo e que a escola é quase uma causa perdida. Esse argumento de enalteci­mento envolve uma postura acrítica e inteiramente positiva em relação à cultura popular. Aqueles que exaltam os benefí­cios dos jogos de computador para a aprendizagem tendem a ignorar as dimensões comerciais dos jogos e evitam perguntas desconfor­tá­veis sobre seus valores e ideo­logias. Também incorrem em uma valorização um tanto vaga da "apren­dizagem informal", em que a aprendizagem formal é vista co­mo algo intrinsecamente ruim. Esse argumento pouco considera a realidade das escolas e das salas de aula - e os muitos problemas que o uso de jogos na apren­dizagem envolve.
Tal abordagem é sintomática do que poderíamos chamar de estratégia de "edutenimento", ou seja, a idéia de que podemos tomar elementos do entretenimento e usá-los para tornar o currículo tradicional mais palatável e interessante, sobretudo para crianças descontentes (que, na atualidade, são cada vez mais os meninos). Isso é o que as indústrias da mídia tipicamente chamam de "aprendizagem divertida" e consitui um mercado crescente tanto nos lares quanto nas escolas. A idéia de que podemos "dourar a pílula" da educação com um pouco de divertimento tem uma longa história. Porém, trata-se de uma abordagem superficial que quase sempre falha. Minhas pesquisas sugerem que as crianças não se deixam iludir: elas sabem a diferença entre um jogo de computador real e um jogo educativo. E também sabem qual deles preferem, tornando-se peritas em pegar o açúcar, mas deixar a pílula para trás.

Rumo ao alfabetismo digital
O problema das estratégias que descrevi é que elas conduzem a um uso acrítico e irrefletido da tecnologia. Elas vêem a tecnologia como um auxílio didático instrumental, uma ferramenta ou uma técnica. Nesse processo, questões fundamentais sobre como as tecnologias medeiam e representam o mundo, como elas criam significado e como são produzidas acabam sendo inevitavelmente marginalizadas.
Muitos anos atrás, o especialista em semiótica Umberto Eco escreveu que, se quisermos usar a televisão para ensinar alguém, primeiro precisamos ensiná-lo a usar a televisão. Isso implica que a educação sobre mídia é um pré-requisito indispensável para a educação com ou através da mídia. Eu diria que o mesmo se aplica à mídia digital. Se quisermos usar a internet, os jogos ou outros meios digitais para ensinar, precisamos equipar os alunos para compreendê-los e ter uma visão crítica desses meios: não podemos considerá-los simplesmente como meios neutros de veicular informações e não devemos usá-los de um modo meramente funcional ou instrumental. Precisamos, nesse caso, é de uma concepção coerente e rigorosa de "alfabetização digital" - em outras palavras, do que as crianças precisam saber sobre esses meios. Isso é muito mais do que uma questão de know-how ou de habilidades funcionais. As crianças precisam desenvolver uma capacidade crítica que lhes permita compreender como a informação é produzida, disseminada e consumida e como ela adquire significado.
Os "conceitos-chave" da educação para mídia - representação, linguagem, produção e público - fornecem uma estrutura abrangente e sistemática que pode ser facilmente aplicada aos meios digitais, como a internet e os jogos de computador. Por exemplo, em relação à internet, essa abordagem levanta questões desafiadoras sobre representação - sobre tendenciosidade, autoridade e ideologia - que costumam ser negligenciadas nas descrições da tecnologia da informação. É necessária uma análise sistemática da linguagem (gramática ou retórica) da web como meio (links, projeto vi­sual, formas de saudação, etc.). Ela inclui uma análise da produção, dos interesses comerciais e institucionais em jogo, de como os textos da web são produzidos e de como se relacionam com outros meios. E ela observa como tudo isso tem impacto no público ou no usuário, como os usuários são alvejados e convidados a participar, o que de fato fazem, o que consideram significativo e aprazível. Acredito que essa abordagem leva-nos além das questões limitadas sobre a informação na internet ser verdadeira ou não, ou se ela é digna de con­fiança. Ela trata das dimensões sociais e culturais da tecnologia de uma forma sistemática e rigorosa, procurando envolver-se diretamente com as experiências dos alunos fora da escola - não a fim de enaltecê-las, mas de interrogá-las criticamente.
No entanto, assim como a alfabetização refere-se à leitura e à escrita, a alfabetização sobre mídia digital também deve envolver leitura crítica e produção criativa. O advento de ferramentas de autoria digital criou novas oportunidades significativas nesse aspecto: os alunos podem criar sites ou vídeos digitais de alta qualidade com ferramentas de fácil acesso. Contudo, a educação em mídia não se restringe ao desenvolvimento de habilidades técnicas ou a alguma noção imatura de criatividade. Trata-se de desenvolver uma compreensão crítica das formas culturais e dos processos de comunicação. Aqui também a tecnologia não precipita mudanças por si só. Ela necessita de interrogação crítica, e seu valor depende crucialmente dos contextos educacionais em que ela é usada.

O fim da tecnologia?
A educação para a mídia oferece uma perspectiva ins­ti­gante, rigorosa e envolvente da tecnologia que a disciplina de TIC não faz com transparência. Ela propicia um modo de associar o uso da tecnologia nas escolas à cultura popular de fora das escolas, embora faça isso de uma maneira crítica e não de enaltecimento. Ela levanta questões críticas que nos levam bem além de um emprego puramente instrumental ou funcional da tecnologia. Creio que a alfabetização para a mídia deve substituir substancialmente a disciplina obrigatória de TIC nas escolas, devendo também estar muito mais integrada à disciplina de língua materna.
As tecnologias digitais são um fato inevitável da vida moderna. Os professores precisam usá-las de uma forma ou de outra - e o livro é uma tecnologia (ou um meio) tanto quanto a internet. Não podemos simplesmente abandonar a mídia e a tecnologia na educação e retornar a um tempo mais simples e natural. Os meios digitais, como a internet e os jogos de computador, real­mente têm enorme potencial para o ensino, mas será difícil realizar esse potencial se persistirmos em considerá-los apenas como tecnologias, e não como formas de cultura e comunicação.

David Buckingham é diretor do Centre for the Study of Children, Youth and Media, Institute of Education, London University.
[email protected]
www.childrenyouthandmediacentre.co.uk

REFERÊNCIAS
BARBOSA, R.M. Ambientes virtuais de aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2005. CORRÊA, J. Educação a distancia: orientações metodológicas. Porto Alegre: Artmed, 2007. PALLOFF, R.M.; PRATT, K. O aluno virtual: um guia para trabalhar com estudantes on-line. Porto Alegre: Artmed, 2004.
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