por Moacyr Scliar
Os arranjos familiares, especialmente os infelizes, estão no centro de grandes romances dos séculos XIX e XX, como Irmãos Karamazov e Vinhas da Ira.
Relações familiares são tema constante na literatura. Mais que isso, famílias freqüentemente representam um microcosmo que reflete uma época. Grandes épicos nasceram assim, sobretudo no século XIX e início do século XX, quando o romance chegou a seu apogeu: as pessoas liam as obras de ficcionistas famosos para aprender sobre o mundo.
Romancistas não eram apenas literatos; eles voltaram-se para sociologia, antropologia e psicologia quando essas ciências estavam apenas engatinhando. Seus textos eram caudalosos; romances em três ou quatro volumes eram muito comuns. E as famílias que retratavam nem sempre representavam o modelo feliz que a gente encontra na publicidade da TV.
Na verdade isto servia aos propósitos da literatura. Como disse Leon Tolstoi em Ana Karenina, todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Da infelicidade brotava pois a melhor, a mais original ficção.
Das muitas famílias que a literatura tornou famosas, quatro são particularmente interessantes. Em primeiro lugar, Os irmãos Karamazov (1879), do russo Fiodor Dostoievski, que Freud considerava "a maior obra da história da literatura". No romance, somos apresentados ao velho Karamazov, um homem amoral, corrupto, que domina sua jovem amante, Grushenka, e disputa-a com o filho mais velho, Dmitri. Um filho ilegítimo do velho, Smerdiakov, mata-o. Cada um dos irmãos representa um tipo humano; Ivan, por exemplo, é o mais instruído, o mais viajado, mas é também um niilista, adepto do "tudo é permitido" - ele influenciará Smerdiakov a cometer o crime, o parricídio que Freud analisará em seu Dostoievski e o parricídio.
Depois temos Os Buddenbrooks (1900), o primeiro romance de Thomas Mann, a história de uma rica família ao longo de quatro gerações, do esplendor à decadência, desde o patriarca, Johann, que vive no início do século XIX, até o jovem Hanno, um talentoso músico que, morrendo de tifo, encerra o ciclo familiar.
Segue-se Os Thibault, que é na verdade um conjunto de oito narrativas publicadas entre 1920 e 1937, um "romance-rio" que valeu a Roger Martin du Gard o Nobel de literatura. Os personagens principais são Jacques e Antoine, filhos de Oscar Thibault, um rico e intransigente católico.
Jacques, idealista e pacifista, vive um drama pessoal durante a Primeira Guerra. Antoine, mais velho, é um humanitário médico; também participa do conflito bélico e fica gravemente doente, vítima do venenoso gás de mostarda. Os dois irmãos formam um retrato da burguesia parisiense. A posição política do escritor, de esquerda, fica evidente na sua visão crítica da tumultuada época.
Crítico é também John Steinbeck em As vinhas da ira, de 1939, que nos fala dos Estados Unidos na época da depressão. A família é a dos Joads, pequenos proprietários rurais, que, como milhares de outros, deixam Oklahoma e partem rumo à Califórnia, a então "terra prometida". Eram, portanto, os equivalentes aos retirantes nordestinos (ainda que não vivendo tão mal). Os Joads são ignorantes, sofridos, não raro violentos - mas profundamente humanos, e é este o grande mérito do autor: mostrar que as pessoas mantêm sua humanidade mesmo em condições difíceis. As vinhas da ira é um exemplo da literatura engajada dos anos 30 que, no Brasil, teve em Jorge Amado seu expoente. Os grandes escritores, aliás, também formam famílias. Famílias a que nos unimos pela afinidade e, sobretudo, pela paixão que em muitos de nós mobiliza a grande literatura, representada por obras como as quatro que citamos.
Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras
Revista Mente e Cérebro
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