Vermelho como o céu
Ensino

Vermelho como o céu



José Pacheco

Num belo filme, chamado Vermelho como o céu, um menino cego guia uma menina por corredores escuros. E uma metáfora de Saramago diz que o grande crime é não cegar quando todos já são cegos. O filme mostra-nos cegos que conseguem "ver" porque, somente quando alcança a saída da caverna platônica, quem vê reassume a missão de conduzir. Isto é, do Ensaio sobre a cegueira ao Ensaio sobre a lucidez, Saramago não faz outra coisa que não seja lembrar-nos da tragédia edipiana, a qual nos fala daqueles que, tendo olhos, não vêem.

Visitei uma escola que me diziam ser "inclusiva". Numa turma da 4ª série, encontrei um aluno que diziam estar "incluído". Copiava frases escritas no quadro tão lentamente que, no fim da cópia, a folha foi para o lixo - estava empastada de saliva, que escorria sem que ele a conseguisse conter. No fundo da sala, o "incluído" tornara-se invisível. A professora explicou por que razão o "incluído" ali estava: "Que quer que eu faça? Ele continua com o livro da 1ª série. Com mais de 30 alunos, já é difícil ensinar os normais. Agora, colocam-me um deficiente na sala. Eu nunca tive formação para isso. Não dá!".

À impotência e à frustração dos professores soma-se o desespero dos pais: "Na hora de matricular é aquele abraço - "Nós vamos dar conta da sua filha" -, mas depois a minha filha passa o tempo todo passeando pela escola ou no fundo da sala. Tem 13 anos, mas não sabe fazer a tarefa que a professora manda fazer em casa. Ela está na 3ª série, mas tem o livro da 1ª série e passa as aulas fazendo cobrinhas... A professora é muito simpática, mas... Quando ela me disse que não sabia trabalhar com a minha filha, eu lhe respondi que trabalhasse como trabalhava com todos os outros alunos. Mas a professora disse que a Belita não sabe se explicar...".

No decurso de um congresso, alguém afirmou: "A organização em turmas não combina com inclusão. Onde houver série, não pode haver respeito pela diferença, não pode haver inclusão". Essa pessoa viu, claramente visto, o logro de uma "inclusão de fachada". Mas há quem não queira ver. Todas as escolas incorporaram a "inclusão" ao seu discurso. Na prática, são escolas inclusivas "não-praticantes", porque não basta o discurso que apela à integração dos diferentes nas escolas ditas regulares. Não basta assegurar o direito à inclusão; é preciso assegurar a inclusão.

Há mais de um século, em O Brasil e as colônias portuguesas, Oliveira Martins (1879/1978) referia-se à transferência da família real para o Rio de Janeiro como a origem dos males que afetam o Brasil. Talvez, mas eximir-me-ei de fazer afirmações peremptórias para não embotar de maus augúrios o ambiente festivo das comemorações dos 200 anos da chegada da família real. Limitar-me-ei a fatos que a história, inclemente, faz questão de recuperar do baú das velharias. No século XIX, Oliveira Martins zurzia as medidas de política educativa de então, que em nada diferem das medidas de política educativa de hoje: "Tudo isto é uma miséria, tudo isto está pedindo uma reverendíssima reforma. A organização atual dos nossos estudos está abaixo da crítica. Encasquetar na memória rosários de abstrações incompreendidas é o acume da insensatez. Embrutecemos [os alunos] com um ensino que é uma hipótese apenas, no fundo da qual está uma grande ignorância de mãos dadas com bastante especulação".

Surpreende a atualidade desta prosa... de 1888. Cento e vinte anos depois, as estatísticas produzidas no lugar de onde Cabral partiu dão conta de déficits acentuados na alfabetização, de elevadíssimas taxas de abandono escolar e de índices muito baixos de cidadãos que conseguiram completar o ensino médio. Nas terras que Cabral achou, os jornais espalham a notícia de alunos analfabetos na 8ª série, de abandono precoce e maciço dos estudos após a 4ª série, do descalabro do ensino médio. Insistimos em "dar aulas", apesar da evidência dos estudos e dos rankings que, periodicamente, reafirmam que os professores ensinam, mas os alunos não aprendem.

Desperdiçamos o nosso precioso tempo em debates bizantinos: qual a melhor idade para aprender a ler? Organização em série ou em ciclo? Escola de oito séries ou de nove anos? Sempre as mesmas inúteis discussões. Quando nos referimos à palavra "aluno", de qual aluno concreto estamos falando? Do João? Da Maria? De nenhum! Se a melhor idade é a idade de cada um, por que se insiste na discussão de abstrações?

Entretanto, o modelo "tradicional" reproduz-se como uma praga: turmas, aulas, horários uniformes, currículos segmentados em anos e ciclos. Mais data show, menos giz: em pleno século XXI, a escola mantém-se tributária de necessidades sociais do século XIX. Os jesuítas eram mestres competentes, pois sabiam o que faziam. Nada consegue abalar a estrutura que deles herdamos. Exaurimos recursos na sujeição a uma racionalidade caduca; reproduzimos um modelo que demonstrou eficácia, mas que se tornou obsoleto e condena ao insucesso sucessivas gerações de alunos e professores.

Um professor quis saber por que razão não havia séries na minha escola. Expliquei-lhe. Pessoa inteligente - como qualquer professor -, ele entendeu as razões que levaram a Ponte a abandonar a segmentação em séries. "E por que há séries na tua?", perguntei. Ele respondeu com o silêncio e um sorriso maroto. Sosseguei-o: "Não te preocupes. Já fiz essa pergunta a muita gente. Ninguém soube dar a resposta. E, se a procurares nos livros, não encontrarás uma única razão, nenhum fundamento a que possamos chamar 'científico' para haver séries".

Retomou o discurso do senso comum pedagógico: "Mesmo que os teóricos falem de ensino diversificado, com 30 ou mais alunos em cada turma, nunca poderemos fazer esse ensino. E não se pode pedir a um aluno da 7ª série o que se pode exigir de um que está na 8ª. Não se pode voltar atrás, porque temos de cumprir o currículo...". Interrompi: "Explica de modo que eu entenda!". Explicou: "Por exemplo, na minha escola havia alunos que estavam na 3ª série e ainda não sabiam ler nem escrever. Pusemos tudo de lado e aproveitamos bem o tempo. Trabalhamos só a língua portuguesa. Também aplicamos planos de recuperação em alunos para que recuperassem o atraso e tivessem um desempenho aceitável".

O professor não se deu ao trabalho de definir conceitos como o de "aluno mais fraco" ou de "desempenho aceitável", ou se foi solicitada à escola a explicação do "atraso". Inspiradas na lógica fabril, com os seus cronogramas de produção e relacionamentos de trabalho hierárquicos, muitas escolas agem como freios ao desenvolvimento, mantêm-se cativas de abstrações como "turma", "carga horária", "ano", "aluno médio", "aluno fraco", "aluno atrasado", entre outras. Não reconfigurando as suas práticas, de modo a dar resposta à diversidade, adotam "planos de recuperação", "aulas de reforço" e outros remendos inúteis.

É urgente reconfigurar o espaço e o tempo escolar à medida de cada criança. É preciso reafirmar que cada cada deve poder ser cada qual. Cada ser humano é único e irrepetível. É indispensável respeitar o ritmo de cada criança, considerar o estilo de inteligência de cada criança, a cultura de origem de cada criança, o repertório de linguagens de cada criança.

Há mais de meio século, Élise Freinet colocava a seguinte questão: "como será uma aula onde os alunos não farão, todos ao mesmo tempo, o mesmo?". Élise Freinet tinha consciência da obsolescência da organização do trabalho escolar centrada em aulas dadas para um (inexistente) "aluno médio" em tempos iguais para todos. Preocupava-se com a imposição de ritmo único a alunos que denotavam diferentes ritmos. Decorrido um século, deparei-me com um artigo assinado por um professor, do qual extraí estes excertos: "misturar na mesma turma alunos com capacidades, conhecimentos e objetivos muito diferentes é prejudicar todos e não beneficiar ninguém. (...) Turmas de nível dão resposta a todos os alunos: aos excelentes, aos medianos e aos menos bons, devendo a turma de nível inferior ser vocacionada, obviamente, para o ensino profissional". O artigo é omisso relativamente ao modo como um professor, dando aula a "turmas de nível", poderá contemplar "o ritmo de aprendizagem e as necessidades de cada aluno em concreto".

Afinando pelo mesmo diapasão, uma secretaria estadual anunciou que criará classes apenas para alunos repetentes, "turmas especiais aos alunos que repetiram a 4ª série do ensino fundamental". A crer na notícia publicada na Folha de São Paulo, a secretária terá dito: "o aluno com dificuldades é aquele que não conseguiu aprender nas salas regulares. Não adianta imaginar que ele conseguirá aprender com o mesmo material didático e o mesmo professor na mesma sala". Segundo a secretária, "a recuperação intensiva ajudará a reverter os maus resultados da rede em exames de aprendizagem".

Para os adeptos das "turmas de nível" e das "turmas de repetentes", existe um só modo de fazer escola: "os alunos ficarão em classes de recuperação, separadas das turmas regulares. As turmas de recuperação da 4ª série serão formadas pelos alunos que repetiram". Atente-se à terminologia utilizada: "turmas especiais", "salas regulares", "classes de recuperação" - nada se enxerga para além do modelo transmissivo, do ensinar a todos como se fossem um só.

Professores e articulistas de pensamento único lamentam o fato de haver "alunos que aprendem demasiado rápido e alunos que são demasiado lentos". No seu léxico, tão vasto quanto ridículo, há "quem não consiga acompanhar o ritmo da aula". Na aula dirigida aos "medianos", os "excelentes" sentam-se no fundão da sala, com MP3 e i-Pod por companhia. Os "menos bons" são remetidos para "classes de recuperação"...

Dizem-me que as aulas que dão já não são como antigamente e que agora as preparam cuidadosamente. Falam-me de aulas "interessantes", mas não consigo entender como pode ser interessante escutar respostas a perguntas que não se faz. Eu sei que há professores que preparam bem as suas aulas, que definem criteriosamente os objetivos, elaboram rigorosamente um plano e elaboram materiais auxiliares de ensino. Não duvido de que sejam profundos conhecedores do assunto que vão lecionar, mas terão pensado bem para quem vão "dar a aula"? Se todos os alunos estão aptos a recebê-la? Se todos aprenderão no mesmo tempo, do mesmo modo, no mesmo ritmo?

Dizem-me que as aulas de hoje são diferentes e melhores que as dadas antigamente. Mas "aula" não é coisa digna de ser melhorada, é coisa para ser questionada, porque não existe um só modo de fazer escola. Por que um tempo de 50 minutos para estudar matemática e outro tempo de 50 minutos para estudar ciências? São 50, 60, 90 minutos para qual aluno? Quando um aluno da Ponte perguntou-me por que razão as aulas em outras escolas duravam 50 minutos, eu respondi que não havia razão alguma, que eu havia feito essa pergunta a muitos professores que dão aulas de 50 minutos e que eles não souberam responder. É porque é, e... pronto!

Há muitos anos, o Ministério da Educação de Portugal reconheceu a "inexistência de estratégias específicas para potenciar a aprendizagem dos alunos com ritmos mais lentos". Concluiu o ministerial estudo que as práticas de ensino vigentes beneficiam "alunos que acompanham, sem grandes dificuldades, ritmos intensos de lecionação" e que a preocupação maior é a de preparar os alunos para fazer exames" (sic). Já era assim há muitos anos. E hoje? Quem se preocupa com a impunidade dos que, ano após ano, "colocam de lado" os alunos que "não acompanham"? Quando acabará o drama de um país que tem os professores certos trabalhando de modo errado?

Somos todos seres únicos e irrepetíveis, mas o modo como muitas escolas estão organizadas não permite dar resposta efetiva aos diferentes. E nos diferentes eu incluo os que, não tendo sinais exteriores de "deficiência", completam a escolaridade básica sem aproveitamento e vão engrossar as fileiras dos desqualificados. É indispensável alterar o modo de organização de muitas escolas e interrogar práticas educativas hegemônicas. Será preciso reconfigurar as escolas para que se concretize uma efetiva diversificação das aprendizagens, que tenha por referência uma política de direitos humanos, que garanta oportunidades educacionais e de realização pessoal para todos.

Convivemos com o "insucesso educativo" como se a expressão não fosse, em si mesma, paradoxal (como pode a palavra "educativo" ser adjetivo da palavra insucesso?), tratando os "desiguais" como se fossem iguais. Felizmente para os "desiguais", nem todas as escolas são "iguais". Eu creio na remissão das escolas, porque creio no potencial transformador de seus professores. E acredito que a escola há de resgatar o seu papel de "berço de oportunidades". Acredito que, algum dia, os professores hão de compreender por que razão, para certos modos de ver, o céu pode ser vermelho.

José Pacheco é mestre em Educação.
[email protected]

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