Os sentidos da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar
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Os sentidos da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar



Os sentidos da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar

Miguel Almir Lima de Araújo

Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Universidade Federal do Estado da Bahia (UNEB) e da Universidade Estadual de Feira de Santana (UFES). E-mail: [email protected]

1. UMA COMPREENSÃO POLIFÔNICA DA SENSIBILIDADE

No bojo da tradição de nossa cultura ocidental, o modelo de pensamento que traduz a ideia de Ratio foi sedimentado com intensidade, instituindo processos civilizatórios modulados, de modo predominante, nos auspícios do saber racional. Esse paradigma que se constitui como emblema de verdade foi estatuído por uma Razão pretensamente suficiente e pura, tendo como implicação o descuido, a denegação da esfera do Sensus, da expressão do sensível, do senso de compreensão, da intuição, das afecções humanas - da Sensibilidade.

Na cultura e no existir humanos, a pertinência e a relevância da presença constitutiva da Razão (Ratio, Logos) é imprescindível como senso que potencializa a criticidade do pensamento, sua expressão como capacidade de discernimento e de indagação radical, como possibilidade de uma Razão que dialoga e que cria Sentidos. Porém, ao ser plasmada de forma isolada e desvinculada do Sensus, como se fosse o único modo de expressão do conhecimento verdadeiro, a Razão incide em processos reducionistas que desqualificam a complexidade intensiva do humano.

Essa supremacia da Ratio que a considera antagônica e superior ao Sensus desemboca em posturas caracterizadas por modos de expressão abstratos e mecânicos que privilegiam as esferas do cálculo e da técnica, da precisão e da uniformidade. Assim, prevalecem as lógicas calculistas em detrimento das expressões que revelam a plasticidade dinâmica do existir, dos fluxos sinuosos do vivido/vivente; da indeterminação e da imponderabilidade - estados ontologicamente constitutivos da complexidade da condição humana.

Os imperativos da racionalidade técnica e instrumental privi-legiaram a lógica do cálculo - a Razão calculista -, que tende a reduzir o humano à funcionalidade do metron, da medida, aos parâmetros da forma mecânica. Essa hegemonia forja lógicas monossêmicas que reduzem a complexidade do existir e da cultura apenas à esfera da retilineidade e da mensurabilidade. Ao operar essa redução, essa postura recalca as dimensões pregnantes do ser-sendo, do existir.

A tradição mítica do pensamento simbólico, mitopoético, que constituiu a Grécia arcaica, se estruturou mediante uma compreensão intuitiva, um Logos, uma Razão existencial que foi sendo gradativamente descartada com a ascensão e a hegemonia do Logos abstrato. Esse Logos privilegia "la esencia frente a la existencia (...) el ser estático frente al devenir dinámico" (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 88), caracterizando, assim, uma Razão incorpórea, imbuída de apatia. Para Ortiz-Osés (2003, p. 88-89), ocorre a passagem de "una filosofia dialógica como la socrática a una filosofia lógica como la platónica-aristotélica-clásica". De um Logos exis-tencial, spermatikós, que supõe pregnância e dialogia, para a universalidade desse Logos abstrato, que supõe monologia e verticalidade.

O Logos primordial, em sua acepção heracliteana, pode ser concebido como busca do Sentido anímico das coisas, do existir, no auscultar os enigmas que constituem os desvãos e paradoxos do humano (JAEGER, 1989; LEÃO, 1991; COLLI, 1996a; HEIDEGGER, 2001). Assim, um Lógos ontológico que projeta vivacidade e admiração, que, em sua condição polilógica, indaga com abertura e radicalidade e penetra com intensidade no claro enigma do humano.

Na órbita dos paradigmas que se tornaram predominantes em nossa cultura, o pathos passa a ser desqualificado e patologizado. Passa a ser tratado como zona sombria que desbota o espírito, o conhecimento verdadeiro. Essa patologização do pathos (paixão) se traduz na repulsão às intensidades das afecções, dos sentires, do mundo sensível que, como força que comove, desconserta e inquieta, deve ser controlada e enclausurada por meio do ascetismo que incide em recalcamento e purificação.

O Sensus, como sentimento e como significação, se estrutura, originariamente, a partir do húmus, do orgânico, da pregnância das humidades do ser-sendo. Projeta-se na nervura da carne, no senciente da corporeidade, no fremir das vivências humanas, a partir da plasticidade sinestésica da expressão originária dos feixes dos cinco sentidos - do pentassensorial - e dos perceptos que emergem de nossas camadas sensíveis mais sutis e vastas - o multissensorial (ZUKAV, 1992). Na proporção em que cuidamos das potencialidades do multissensorial, tecendo a relação de coexistência e de interdependência existente entre os diversos perceptos, dos tons de suas singularidades, descortinamos a vastidão dos vãos de nosso universo sensível, urdimos o espectro da Sensibilidade em suas dimensões seminal e anímica. Assim, o Sensus emerge dos horizontes do sensório, dos perceptos sensíveis, do senso intuitivo, em suas expressões pregnantes, se expande e se prolonga nos sensos do imaginário, da consciência compreensiva, da Razão-Sentido.

Para Abbagnano (1962, p. 840), o sensível "é o que pode ser percebido pelos sentidos" e a Sensibilidade está na "esfera das operações sensíveis do homem", revela a "capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos (...), de participar das emoções alheias ou de simpatizar". Barbier (2001, p. 136) concebe Sensibilidade como estado "que dá sentido a todos os sentidos", compreendendo "sentido como universo de significados existencialmente encarnado e não susceptível a uma explicação, mas somente a uma compreensão multirreferencial e transdisciplinar a partir de uma implicação pessoal" (BARBIER, 2001, p. 136-137). Assim, Sensibilidade como amálgama que agrega os sensos perceptivos na tecelagem dos Sentidos pregnantes e anímicos do existir.

A dis-posição do estado sensível nos possibilita o estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, de modo encarnado e radical, mediante os processos de percepção e de compreensão em que podemos tocar, cheirar, escutar, saborear e olhar o mundo, bem como, conjuntamente, pensar, meditar por meio de nossa relação direta e originária com ele. Essa dis-posição desemboca em formas de saber - sapere - imbuídas do elã do vivido-vivente que traduzem um "enraizamento dinâmico".

Destarte, o universo do estésico, do sensível - o Sensus -, se entretece, no dinamismo de sua plasticidade, como instância policrômica, como dis-posição de nosso ser senciente e pensante que, desse modo, pode vivenciar e compreender com vigor os fenômenos, a vida. Merleau-Ponty (1984, p. 228) proclama que "O sensível (...) como a vida, é um tesouro sempre cheio de coisas a dizer" na intensidade da membrura, da carnalidade do existir, "na juntura onde se cruzam as múltiplas entradas do mundo" (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 235, grifos do autor), nas dobras de suas encruzilhadas.

Nessa perspectiva, o Sensus se traduz na expressão plástica dos perceptos sensíveis que plasmam as afecções, o imaginário, e que, conjuntamente e de modo implicado, plasma a consciência compreensiva, o senso meditativo, impregnando o existir de mais Sentidos, de Sentidos vivos e originários. Swimme (1991, p. 80) proclama que "o universo é sensível - é um reino de sensibilidade". Assim, quanto mais exercitamos as potencialidades sensíveis, mais e melhor podemos apreender, compreender e vivenciar a dinamicidade dos fluxos do universo, os ritmos sincopados do existir, das coisas; mais podemos cultivar nossas potencialidades ad-mirantes, mirando com despojamento e implicação, com vivacidade e alumbramento.

O cuidado com a Sensibilidade se traduz e se descortina na abertura despojada, na dis-posição de nossas potencialidades humanas, de nossos sensos perceptivos, pela relação coexistencial entre a corporeidade e a espiritualidade e se desdobram em processos compreensivos e vivenciais. Processos que vislumbram a inteireza in-tensiva da condição humana. Dis-posição para a percepção, a compreensão dos fenômenos, da complexidade e da inteireza do existir.

O estado de dis-posição do espectro da Sensibilidade nos implica com os enigmas do ser, do existir e do coexistir; nos cumpliciza com as coisas que nos afetam, de modo acolhedor, em que nos simpatizamos e nos empatizamos coimplicativamente. O estado de solicitude da Sensibilidade incide numa atitude de não-resistência aos desafios do devir, de superação das posturas defensivas. Incide em abertura para os influxos dos fenômenos, para os fluxos tensoriais do existir. Esse estado nos con-voca por inteiro, de modo penetrante, para processos in-tensivos de buscas que incidem em desafios altaneiros; para a percepção e a ad-miração das silhuetas do existir mediante o mirar vasto e espirituoso da alma e do coração. Dessa forma, a abertura sensível faz emergir o pasmo do estado nascente que leva a processos ad-mirantes de encantação.

A esfera do sentir/sensível, não é nem apenas estimulante nem apenas coadjuvante, mas, sobretudo, estruturante nos processos de sedimentação do saber/conhecer, dos Sentidos, conjuntamente com a esfera do racional. O sentir e o inteligir são dois modos e níveis diferenciados de um mesmo processo de percepção, de apreensão e de compreensão. Existe uma codeterminação/coimplicação originária entre sensível e inteligível. Pensamos sentindo e sentimos inteligindo, simultânea e alternadamente. A inteligência é um compósito híbrido de senciente e de pensante. O sentir é inerente ao próprio inteligir.

Essa abertura, essa dis-posição de nossa condição de ser sensível, de nossa Sensibilidade, nos proporciona uma percepção penetrante da porosidade, dos ritmos, das ranhuras, das texturas, das espessuras, das dobras, da pulsação, das expressões viscerais do que é vivo, dos recurvamentos e das ambiguidades dos fenômenos, do existir, em seus estados de vibração e de movência. Os perceptos dis-postos nos levam a farejar, a apreender os fenômenos, as coisas, em sua pregnância originária. O olhar, o escutar, o tocar, o sorver, o cheirar, que perfazem a percepção atenta e sensível, nos dis-põem a perceber e a apreender com proximidade, desde dentro, as vicissitudes da heterogeneidade do vivido/vivente, em seus flancos ponderáveis e imponderáveis. Assim, podemos compreendê-los melhor, em seus limites e possibilidades, com expansividade, rigor e vigor.

A substância sensível - o homo/húmus, o mundus sensibilis - impulsiona o pathos que impele o estado de perplexidade e de admiração. Provoca o espanto originário que arrepia e co-move, que instala momentos inaugurais na composição dos processos de compreensão e de invenção do existir, dos agenciamentos de Sentidos encharcados com o elã do anímico. Heidegger (2001, p. 25) fala do "espantar-se com o porvir do princípio", do estado nascente e admirável das coisas. Afirma que "é preciso espantar-se diante do simples, e assumir esse espanto como morada" (HEIDEGGER, 2001, p. 229), como a morada extraordinária da singeleza do humano. Espanto que enreda perplexidade e que aponta para a radicalidade in-tensiva das buscas e dos desafios extraordinários.

Para Heidegger (1989, p. 21), o pathos - paskhein - conota "deixar-se con-vocar por". Traduz o dispor-se, o abrir-se aos apelos que a relação de espantamento para com os fenômenos nos provoca. A plasticidade do sensível, da estesia, nos co-move, nos aproxima e nos adentra nas sinuosidades, nas reentrâncias e nos feixes pregnantes do vivido/vivente, nas curvaturas que cingem as trajetórias humanas; nos compele a ultrapassar os estados de anestesiamento que comprimem o humano e nos enredam nas in-tensidades do ser-sendo.

Muitas vezes, na trama das relações cotidianas, pelos influxos das experiências vividas, sobretudo no mundo contemporâneo, a esfera do sensível é veiculada e canalizada por práticas instituídas que tangenciam o corpo, as emoções, os sentimentos - a dimensão afeccional - com propósitos de anestesiamento, de massificação e de controle. Numa sociedade que privilegia a lógica do mercado - a mercado-lógica -, a supremacia do utilitário, da esfera do ter, com a onda avassaladora do consumismo que leva à consumação do próprio existir humano, as expressões originárias da Sensibilidade passam, em grandes porporções, a ser aplastadas e homogeneizadas de modo grotesco.

1.1 A Sensibilidade como estado de dis-posição pregnante e anímico

Uma compreensão ontológico-policrômica da Sensibilidade a concebe como expressão originária e matricial (matriz geradora) do Sensus que implica e coimplica o senso noético, o horizonte dos Sentidos, a consciência compreensiva e o senso afeccional, a textura da corporeidade, o elã do pathos. Sensibilidade como estado pregnante e anímico que emerge desde dentro, das nascentes do existir, que se traduz na radicalidade e na amplitude da dis-posição e da abertura existenciais para as transitudes do ser-sendo. Dis-posição que proporciona a compreensão e a vivência da inteireza do ser-sendo no dinamismo de suas in-tensidades e incompletudes. Esse estado de despojamento nos con-voca para os processos de coimplicação para com os fenômenos, para com os influxos do jogo do existir, do coexistir; para o cuidado e o desvelo com a heterogênese do entramado da condição humana.

Nesse horizonte compreensivo, a Sensibilidade é concebida como estado de dis-posição do corpo e do espírito, como constitutivos ontológicos da inteireza híbrida do ser-sendo, que, de modo coexistencial, nos conduzem à fruição do sentimento do mundo na expressão de sua vastidão incomensurável. Desse modo, com o farejar dessa abertura empática da Sensibilidade, podemos perceber, sentir e fruir o estado de entrelaçamento que nos interliga com todos os seres do universo/ pluriverso, mediante o elã da sinergia que nos interpenetra e que nos implica com a anima mundi (alma do mundo). Assim, podemos com-partilhar a sutileza dos sentimentos que nos sinergizam com todos os seres do universo; podemos nos enredar na simpatia do todo.

A Sensibilidade se configura no estado de abertura estésica que implica inerência e aderência ao coração da experiência vivida/vivente e incide na expressão do pasmo que espanta e se desborda na ad-miração. Ad-miração que nos co-move diante das in-tensidades e da plasticidade dos fenômenos, do existir. Estado que nos con-voca e nos implica por inteiro para processos de coexistência; que leva a perceber e a compreender as reentrâncias do emaranhado que perfaz a teia mestiça dos fenômenos do existir; que se descortina numa abertura aurorescente para a crepuscularidade do ser-sendo, em sua radicalidade originária, em seu fundo sem fundo. Abertura para a trama de seus cruzamentos e hibridações, paradoxos e enigmas, para os fluxos tensoriais do existir.

Os feixes que plasmam a aragem da Sensibilidade nos arremessam nos flancos do aberto, desse fundo sem fundo que revela vastidão incontornável. Propiciam o estado de abertura originária e indeterminada para o suceder dos acontecimentos, das coisas sendo, dos fluxos das contingências. Os estados de despojamento e de dis-ponibilidade do espírito e do coração nos lançam nas curvaturas das travessias e das itinerrâncias do ser-sendo; nos levam a per-correr os riscos dos desafios que co-movem e implicam posturas audaciosas na transitude movediça do existir. Assim, o cuidado com a Sensibilidade nos conduz à percepção e à compreensão do arco de nossos limites e possibilidades existenciais, de nossas fragilidades e forças, de nossas incompletudes; leva-nos a identificar nossas próprias insensibilidades. Torna-nos não-indiferentes diante das contingências, das dores do mundo.

Sensibilidade como estado com-preensivo que nos precipita no transitar pelos caminhos do deserto, sob o regime do solar, com suas trajetórias mais contornadas e, conjunta e implicadamente, no transitar pelas veredas da floresta, sob a penumbra do lunar, com suas trajetórias mais incontornáveis. Assim, o espectro da Sensibilidade nos incursiona pelas encruzilhadas de Sentidos existenciais constituídos por desertos e por florestas, pela aragem do lusco-fusco, do solunar.

Esse cuidado com o dinamismo do espectro da Sensibilidade implica o cultivo de um senso fino e acurado de percepção e de compreensão que nos conduz ao esprit de finesse (espírito de fineza) como estado de fruição da fineza do ser-sendo. Estado que, assim, aguça o senso perspicaz de discernimento e de compreensão da constituição híbrida dos fenômenos e do existir; fomenta o senso espirituoso e afetual que, ao com-preender, se implica e se coimplica com o existir e com as coisas, com os fenômenos e os seres, com cordialidade e simpatia, com desprendimento e generosidade; que proporciona o cultivo do sentimento do mundo.

Na mitologia grega, Hermes representa a ponte, a encruzilhada, o deus estradeiro que interliga e entrecruza, o condutor de almas. É o mediador entre os deuses e os humanos. Íris traduz o arco-íris como expressão exuberante que, em sua policromia inefável, estampa os tons mestiços que trançam e interpenetram as dimensões diversas do existir e da cultura humanas em sua unitas multiplex (unidade na multiplicidade). Íris representa o arco de união entre o céu e a terra, entre deuses e humanos. "A Íris é a flor primaveril" que estampa a cromaticidade de seus matizes entrelaçados (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 507).

Nesse prisma de compreensão, a Sensibilidade é hermesiana e arco-írica ao se configurar como espectro de uma ponte, de uma encruzilhada que entrelaça e interpenetra as policromias e polifonias dos Sentidos humanos mediante processos pregnantes e anímicos de percepção, de compreensão e de vivenciação do existir, do coexistir. A Sensibilidade traduz a in-tensidade da coexistência originária entre a abertura dos sentidos e da intelecção, entre Intuição e Razão, entre anima e animus, entre luzes e sombras. Daí sua condição e sua estrutura êntrica, sua pertinência como metáfora da androginia.

Dessa forma, o cuidado com a Sensibilidade se configura como a busca de um perceber e de um compreender arco-írico e hermesiano que desborda as ressonâncias da policromia de seus feixes. Feixes que traduzem as interpenetrações das silhuetas dos matizes que estampam o existir e o coexistir. Uma compreensão hermesiana e arco-írica que re-vela a plasticidade dos fenômenos humanos nos fluxos tensoriais que se plasmam na composição de sua harmonia conflitual. Compreensão que, assim, afirma a inteireza in-tensiva das encruzilhadas mestiças do existir e do coexistir, na hibridação iridescente que amalgama o pregnante, a terra - o ctônico - e o anímico, o céu - o urânico.

Assim, Sensibilidade como mirada e morada constelada de policromias e de polifonias que descortinam o estado pregnante e anímico de dis-posição de nossos sensos afeccionais (emoções, sentimentos) e noéticos (pensamento). Dis-posição para uma com-preensão e uma vivência vasta e funda nas in-tensidades da teia do ser-sendo-com-os-outros pela fruição de Sentidos con-sentidos em nosso copertencimento planetário - uma ecosensibilidade.

2. O FENÔMENO DO EDUCAR COMO UM RITO DE INICIAÇÃO AO ADVENTO DA SENSIBILIDADE

Compreendo o educar como ação que se descortina nas mais diversas instâncias de nosso estar-sendo-no-mundo-com-os-outros, desde as esferas mais institucionais e formais às esferas mais aleatórias e informais nos influxos do coexistir cotidiano. Portanto, as meditações aqui plasmadas se norteiam nessa compreensão pluralista de educar e pontuam, sobretudo, a especificidade da ação educativa nas práticas das instituições escolares/acadêmicas. Porém, analogicamente, essas meditações também atravessam as demais instâncias educativas, considerando as similaridades que existem entre estas, apesar de suas diferenças, no transcurso de nosso processo civilizatório.

Há duas vertentes etimológicas que apresentam conotações distintas para o vocábulo Educação/educar que são as expressões latinas educare e educere (DEBESSE; MIALARET, 1974; FULLAT, 1995). Educare significa ação de formar, nutrir, guiar e instruir. Educere conota tirar para fora de, conduzir, levar e criar. Educare apresenta características mais externas que configuram uma ação de cunho instrucional, de transmissão de saber que se processa de modo assimilativo. Refere-se mais à formação técnica e implica posturas mais funcionais, que concebem o educar como processo de transmissão, de reprodução de saberes de modo relativamente estático e mecânico.

Educere incide em processos educacionais que emergem desde dentro e, com seu dinamismo e in-tensidade, fomentam o espírito de criticidade e de inventividade, o senso intuitivo e a imaginação criante dos indivíduos. Processos que também implicam a transmissão e a assimilação dos saberes e dos valores instituídos, mas, sobretudo, implicam sua expansão, criação e recriação, nas in-tensidades dos fluxos moventes da cultura, pela renovação e pela instituição de novos saberes e sentires. Desse modo, a ação de educar incide no cuidado com a iniciação aos Sentidos humanos, de modo teórico e vivencial. Descortina processos que fomentam as potencialidades criantes de cada indivíduo imerso em seus contextos culturais, no ethos vivo, redivivo.

O eixo semântico de educere traduz processos de condução, ou seja, partindo do lugar existencial em que estamos circunscritos no mundo, na contextura dos entre-lugares, somos impulsionados às aventuras das buscas e descobertas, dos processos de renovação e de criação de valores e de Sentidos que afirmam e robustecem a condição humana. Assim, educar traduz uma aventura inaugural, alterativa, no horizonte aberto dos Sentidos. Nesses fluxos, mobilizamos nossas potencialidades criantes proporcionando a afirmação e a construção dos Sentidos do existir, da saga de nossa destinação no mundo.

Con-duzir conota caminhar com, coparticipar dos processos, dos deslocamentos, das travessias, de modo co-laborativo. Portanto, não significa uma postura de passividade e de apatia em que alguém, de modo vertical, impõe saberes sobre os outros, monológica e autocraticamente. Educar supõe a química do aprendizado das relações, da relacionalidade, de modo horizontal e coimplicado, em que os en-volvidos na ação co-operam e co-participam dialogicamente, mediante os matizes das singularidades e as inter-relações das diferenças nas in-tensidades dos processos de co-aprendência. Assim, muito mais que ensinança, educar conota aprendência, co-aprendência. Toda aprendência, em seu sentido mais vasto, traduz co-aprendência nos interfluxos da coexistência.

Educação como rito de iniciação implica uma compreensão desta como ação viva, tecida de modo teórico e vivencial, nos processos de afirmação e de renovação dos Sentidos humanos. Ou seja, pela articulação de saberes/conteúdos (repertórios culturais), de processos de meditação e de ruminação teórica e, conjuntamente, de forma simultânea e alternada, por meio de experiências vivenciais em que os saberes são mediados por momentos e processos de fruição em que o corpo e o espírito copulam com in-tensidade.

Assim, podemos tecer saberes (sapere) que incidem em buscas de sabedorias que podem ser sorvidas na pregnância das vivências cotidianas. Aprendemos e compreendemos de forma mais intensa aquilo que atravessamos e que nos atravessa por inteiro, na nervura das experiências vividas/viventes. Aprendência como apropriação e reapropriação de Sentidos provados pelos sensos perceptivos.

As ações de educar que se configuram como ritos de iniciação são realizadas de modo teórico-vivencial e proporcionam aprendências que nos marcam por inteiro, pelas mais diversas formas de vivenciação destes, em que corpo e espírito se enredam de modo coexistencial. Essas iniciações mobilizam de forma ampla nossos sensos perceptivos e compreensivos, bem como a imaginação e o espírito criantes para as in-tensidades dos desafios, para a criação de Sentidos anímicos.

O que nos atravessa desde dentro, mobilizando a corporeidade, a pregnância dos sentires e, de modo implicado, a consciência compreensiva, a espiritualidade, inspira e infunde o elã do anímico, a polifonia dos Sentidos do existir. Ao ritualizar, re-atualizamos, elaboramos internamente, de modo pregnante e anímico, operando a fruição das aprendências, da afirmação, da criação dos Sentidos. Assim, os sensos perceptivos e compreensivos, a consciência e o imaginário ruminam e decantam, projetando saberes e sentires encarnados, impregnados de elã vital. Saber eivado de sapere, encharcado de húmus, com o gosto do viver e que implica a busca espirituosa de sabedoria.

2.1 A predominância das práticas educativas instrucionais

As práticas educativas instituídas em nossa sociedade se configuram, de modo predominante, como práticas instrucionais, na proporção em que privilegiam a pragmaticidade e a funcionalidade, vislumbrando a (in)formação técnica dos indivíduos para o exercício de suas funções profissionais, de seus papeis sociais. Dessa forma, as práticas instrucionais se caracterizam como processos mecanizados de trans-missão dos saberes tecnocientíficos instituídos por meio de procedi-mentos de natureza técnica e instrumental em que as demandas do ter são superestimadas em detrimento dos valores do ser, incidindo em processos sistemáticos de desumanização. Investe-se em processos instrucionais de caráter informativo que funcionalmente instruem os indivíduos para o cumprimento de seus papeis sociais. Papeis que, em si mesmos, se configuram como representações externas, como máscaras que projetam os modelos empadronados pelas instituições.

Desse modo, as práticas instrucionais "preparam" "recursos humanos" como entes competentes para funcionalizarem as máquinas e os modos de produção socioeconômicos, garantindo, assim, a eficácia dos aparatos tecno-burocráticos dos poderes instituídos pela cadência de sua ordem monocórdica, que privilegia os princípios do ter, a posse das coisas. Inclusive a posse dos próprios seres humanos que, nessa esfera, são reduzidos aos formatos de seus papeis profissionais, sendo, assim, expropriados de si mesmos. Profissionais que, com a eficiência no cumprimento de seus papeis, garantem a eficácia da ordem estabelecida na compulsão de processos que uniformizam e coisificam. Desse modo, os seres humanos são convertidos em meros recursos, em coisa, sob os ditames dos poderes que operam a tecnociência, as estruturas socioeconômicas, funcionalizando as instituições com seus sistemas produtivos.

Destarte, as pedagogias instrucionais instituem processos de empadronamento dos indivíduos aos estatutos de suas lógicas homogeneizantes. As diferenças são comprimidas e pretensamente diluídas para que esses indivíduos sejam docilizados e conformados pela uniformidade de suas lógicas. Instala-se, assim, uma "pedagogia de rebanho", que pretende reduzir os indivíduos a seres bem-comportados e controlados pelo aparato de suas leis e normas aprisionantes.

A predominância dessas práticas instrucionais descamba no que podemos chamar de caducação da educação, ou seja, ao denegar e comprimir a dinâmica da plasticidade do educar, como processo in-tensivo e vivo que fomenta a expressão do elã vital, das capacidades criantes dos indivíduos, as práticas instrucionais tendem a desfigurá-lo por meio de suas posturas homogeneizantes; tendem a se desertificar na esterilidade de seus métodos e conteúdos desprovidos de vitalidade.

2.2 O educar como processo de fruição da Sensibilidade

Os espaços em que acontecem as ações do educar são constituídos, geoculturalmente, como entre-lugares em que os indivíduos, em sua condição biocultural, se encontram para com-partilhar e expandir a diversidade de seus saberes e sentires. São encruzilhadas mestiças em que se entrecruzam, com in-tensidade, a pluralidade de valores e de crenças dos indivíduos e grupos humanos e que potencializam fluxos tensoriais de relações dialógicas que podem enriquecer, aproximar e entrelaçar.

Esses entre-lugares fomentam a perspectiva da unidade na diversidade mediante o reconhecimento dos Sentidos humanos atinentes à singularidade de cada indivíduo e de seus grupamentos, bem como a consciência da relevância dos processos de compartilhamentos in-tensivos das diferenças. Isso pode ocorrer pelo cultivo e pelo cuidado para com os elos que nos agregam naquilo que é comum à nossa condição humana, ou seja, mediante as interligações das semelhanças que nos proporcionam a coexistência como seres humanos, no garimpar as pequenezas e as grandezas, os enigmas dos tesouros da alma e do coração.

Essa compreensão do educar, em suas diversas modalidades, considera este como um rito vivo de iniciação que ocorre nesses entre-lugares como encruzilhadas em que se interpenetram os diversos saberes e sentires, as crenças e os valores que constituem os repertórios de seus protagonistas. Esses processos de iniciação podem proporcionar a afirmação das singularidades dos indivíduos e grupos, despertar o senso de interculturalidade, de com-partilhamento e de enriquecimento mútuo.

Desse modo, podemos instalar processos de aprendência e de co-aprendência em que nos aprendemos uns com os outros, uns aos outros. Em que rendamos a estampa da rede in-tensiva da coexistência humana. Assim, aprendemos a ser nós mesmos, na proporção em que urdimos a aprendência do ser-com-os-outros, em que nos aprendemos.

Dessa forma, o educar implica, sobretudo, uma con-vivência com o outro, efetiva e afetivamente. Con-vivência que proporciona processos in-tensivos de autoeducação, heteroeducação e de eco-educação (PINEAU, 1999). Assim, tecemos os fios da autoeducação mediante as aprendências do si mesmo, da autoaprendência; da heteroeducação mediante as aprendências coletivas com os outros seres humanos; da ecoeducação no enredar as coaprendências na teia ecossistêmica mediante nossa relação com todos seres do planeta. Educamo-nos, em todas essas perspectivas, por meio da relação in-tensiva conosco mesmos e com os outros seres humanos, como também com os demais seres com os quais estamos vinculados em planos diversos como seres interdependentes.

Avento uma prática educativa que busca o cuidado primoroso com a corporeidade, em sua constituição orgânica e simbólica, como estofo que traduz a pregnância e a animicidade dos Sentidos humanos. Um cuidado que implica o trato com as afecções e energias humanas, partindo do pentassensorial, dos cinco sentidos primários, pelo cultivo e pela lapidação destes, em que aprendemos a cheirar, a escutar, a degustar, a olhar e a tocar com fineza as expressões do existir.

Ao procurarmos cuidar da corporeidade, das afecções, afirmando suas potências que vivificam e humanizam, podemos potencializar posturas e relações imbuídas de despojamento e de simpatia que implicam tanto os processos de crescimento pessoal quanto interpessoal, e que projetam ambientes, relações e ações educativas estimuladoras e aprazíveis. Podemos instalar entre-lugares educativos em que a simpatia e a empatia nos co-movem mediante a tecelagem de teias abertas que enredam ritos de iniciação às aprendências da afetividade humana. Afetividade humana em suas expressões afirmadoras da cromaticidade e das in-tensidades afeccionais do existir, do coexistir.

Como rito de iniciação ao advento da Sensibilidade, a ação de educar penetra nas in-tensidades do entramado multicor dos símbolos mitopoéticos que plasmam nossos imaginários, garimpando e se nutrindo do vigor de seus mananciais. O dinamismo das imagens, dos símbolos que estruturam o mitopoético, revela estruturas arquetípicas primordiais. Estruturas que se alojam em nossas camadas mais internas e inconscientes, marcadas pela intuição, pelas afecções, pela memória coletiva. Desse modo, o espectro do mitopoético traduz crenças, desejos e sonhos fundos e projeta a polifonia dos Sentidos implicados com o vivido/vivente mediante a potência ligante dos símbolos.

Destarte, o cultivo do imaginário simbólico, do mitopoético na ação de educar, implica o descortinar de ações iniciáticas encharcadas com o elã do imaginal, da força inspiradora e nutridora das metáforas, dos símbolos, dos feixes do mítico e do poético. Esse cultivo incide no fomentar as potencialidades criantes do espírito e da imaginação dos indivíduos na fruição da poeticidade dos fenômenos, do existir, do senso intuitivo e afeccional. Dessa forma, os saberes e sentires são ruminados mediante a expressividade de suas dimensões prosaicas e poéticas em que os Sentidos são sorvidos em sua constituição polifônica e em sua implicação com a pregnância do vivido/vivente. Os feixes do mitopoético infundem ao educar estados de fruição da poeticidade do existir.

A presença da Razão-Sentido na ação de educar se traduz como possibilidade que fomenta a expressão da inquietude do espírito interrogante que desafia e problematiza os fenômenos, o existir, com seu senso vasto de com-preensão dialógica, de ponderação espirituosa, com seu tino de discernimento e seu pensar encarnado.

A Razão-Sentido re-vela a altivez do espírito audacioso. Espírito que transita pelas pedras do caminho como oportunidades estimulantes, como momentos impulsionadores das buscas de Sentidos, em que este pode se descortinar de modo altaneiro. Espírito-águia que se nutre do húmus da terra, do telúrico, das finitudes das contingências do cotidiano, mas que alça seus voos pelos horizontes da infinitude. Que, desde dentro do visível, da imanência, da tangibilidade do existir, penetra pelo invisível, pela transcendência e pela intangibilidade.

Assim, o fulcro da Razão-Sentido projeta o pensamento inter-rogante, que, com seu senso de criticidade, busca problematizar e dis-cernir, compreender com radicalidade as expressões da cultura humana, os fenômenos do existir, a complexidade do educar. Uma Razão-Sentido como Razão compreensiva, que escuta e dialoga, que se implica com os fenômenos, com o existir e o coexistir.

A tecedura da plasticidade da ação do educar como cuidado com a Sensibilidade supõe uma relação de coexistência entre a Ética e a Estética, a interpenetração entre o bem e o belo, a dignidade e a beleza. Uma ação educacional que pretende iniciar os seres humanos no advento de seu ser-sendo pregnante e anímico opera esse entrecruzamento in-tensivo entre a consciência Ética e a fruição Estética. Assim, promove o cuidado com os valores primordiais da solidariedade, da justiça, da paz, da liberdade, do bem, etc. e compreende que estes se fragmentam e se desbotam se prescindem da delicadeza, da elegância, das estampas do belo, da fineza da beleza. Freire (1996, p. 26) realça que a prática educativa deve ser "estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade". A coexistência entre Ética e Estética traduz a busca primorosa do advento da inteireza in-tensiva do humano em seus estados de grandeza e de fineza. Busca que instaura uma morada humana tanto vistosa quanto benfazeja, tanto bonita quanto digna.

Como as aprendências das experiências apontam, essa iniciação aos territórios entrecruzados da Ética e da Estética não pode fecundar apenas na esfera estrita do plano teórico, nas articulações abstratas de saberes. Carece da iniciação teórico-vivencial, da nervura do vivido/ vivente, por meio de ações desafiadoras que mobilizam conjuntamente corpo e espírito. Dessa forma, podemos nos iniciar existencialmente nessas aprendências anímicas. Apenas a esfera do saber teórico pode instruir e in-formar, mas não implica, de modo geral, processos de iniciação ao existir cotidiano, nas buscas de sabedoria. O mero saber se confina apenas às práticas instrucionais, ao âmbito funcional da técnica. Não penetra no horizonte existencial dos Sentidos.

O cuidado com o advento dos valores humanos, da Sensibilidade, mediante os ritos vivos de iniciação, implica um processo pedagógico que se lastreia no pathos do amoroso. Os feixes do amoroso nos abrem e nos dis-põem para vivências in-tensivas conosco mesmos e com os outros, suscitando entrelaces que nos aproximam e que compelem aos abraços que ecofraternizam. A sinergia do amoroso implica a fruição dos sentires que co-movem, que jorram in-tensidade e alumbramento. A vibração do amoroso desborda a simpatia e a empatia dos laços afetivos que nos coimplicam no com-partilhar as diferenças. Assim, podemos celebrar os elos que nos unem e engrandecem, que fazem expandir o sentimento do mundo, a sinergia do ser-sendo-com-os-outros. Naranjo (2005, p. 155) fala de "una educación del sentimiento de humanidad", do sentimento de copertencimento à humanidade.

O amor como princípio educativo, potencializa o desbordar do advento da condição humana, em suas fragilidades e limites, na vastidão de sua magnitude, no cultivo dos valores que enobrecem - da Sensibilidade; acende as flamas da alma e do coração, conduzindo à floração do ser-sendo-com-os-outros no tecer o desafio da ecofraternização, de nosso copertencimento planetário - a Ordo Amoris. Assim, podemos ultrapassar os valores e posturas egocêntricos - o espectro da egocidadania - e nos enredar pelos desafios dos valores e posturas ecocêntricos - no espectro do ecocidadania. Ou seja, podemos fazer a travessia que nos leva do egoísmo, que mutila e encaverna, para a postura compassiva do ecoísmo, que religa e planetariza em nossa condição de seres interdependentes.

Esses processos dialógicos se desdobram a partir dos mananciais de sabedorias da humanidade, na afirmação de posturas que manifestam solidariedade, amorosidade e dignidade. Mas, sobretudo, busca ultrapassar os humanismos que superestimam o ser humano, considerando-o como o centro do universo - o antropocentrismo -, secundarizando e redu-zindo os outros seres à condição de periféricos. Assim, urge instaurar a perspectiva policêntrica do ecohumanismo, que vislumbra a relação de coexistência in-tensiva e interdependente entre os seres humanos e todos os seres do universo/pluriverso, na singularidade irredutível de cada presença, afirmando a diversidade da teia mestiça que nos une ecossistemicamente. Nessa perspectiva policêntrica, inexistem centros exclusivos e deterministas e há, sim, uma teia entrelaçada em que todos os seres, em suas singularidades, se constituem como coexistentes e codeterminantes, portanto, uma cosmovisão ecocêntrica em que o centro se encontra em toda parte e a circunferência em nenhum lugar.

Dessa forma, propugno um educar para a Sensibilidade ecológica/ecossistêmica - uma ecosensibilidade - que compreende a composição do dinamismo dessa rede que entrelaça todos os seres e que, assim, pode nos levar a posturas que afirmam essa cosmovisão. Cuidar da cosmovisão ecohumanista implica a instauração de uma postura ecofraternizante, em que procuramos nos fraternizar com os seres humanos e a diversidade dos seres que povoam o cosmos com os quais somos interdependentes. Implica ultrapassar os ditames do patriarcado, ousando instaurar o fratriarcado, instituindo, assim, modos de relação inter-humana e eco-humana inspirados no sentimento de fraternização. Sentimento que, cordialmente, reconhece e acolhe a todos, na magnitude de suas singularidades, fomentando o com-partilhamento da coexistência que ecofraterniza ao nos implicar e nos coimplicar uns com os outros.

Como processo que pode conduzir aos compassos de re-encantação da vida, do mundo, a ação de educar carece de invenção e de reinvenção constantes, tanto em seus modos e formas quanto nos repertórios de seus conteúdos. Carece de processos que conduzam à admiração, ao espanto, que implicam constante renovação. A alquimia desses processos de renovação supõe espíritos e corações despojados, para que possam estar constantemente se recriando e se reinventando no suceder das contingências educacionais e existenciais.

A presença do senso intuitivo do existir é uma das expressões mais fecundas mediante a articulação da ação de educar como rito de iniciação na dinamização de seus processos de criação. O desvelo e a escuta do senso intuitivo, com as sutilezas de suas tonalidades e texturas internas, fomenta a imaginação criante, nos revela insights que propor-cionam estalos espirituosos. O farejar da intuição implica o auscultar interior que leva a percepções penetrantes e que alargam a consciência compreensiva e engravidam processos inventivos na emergência do surpreendente.

A intuição, o senso intuitivo, leva a cavucar as reentrâncias e as espessuras dos fenômenos do educar, penetrando em suas opacidades e imponderáveis. Permite captar indícios internos que levam a uma compreensão minuciosa das curvaturas das ações educativas. O cuidado atencioso com a intuição possibilita percepções perspicazes e sentires fundos que brotam desde dentro do dinamismo das relações entre educadores e educandos, das texturas e porosidades das interrelações: dos gestos, dos movimentos difusos, dos silêncios, dos humores...

A percepção intuitiva capta meandros das atitudes e dos fenômenos que escapam ao senso lógico-formal tidos como aparentemente insignificantes. Meandros que, pelo primor dessa mirada, pelos estalos de seus insights, se configuram como aspectos e detalhes bastante relevantes para a ação de educar na perspectiva da escuta sensível, do senso com-preensivo, da simpatia e da empatia.

Inspirado nessa compreensão ontológica da Sensibilidade, o educar implica ações de cunho libertário que apontam para processos heterogêneos de conquista das liberdades humanas primordiais, de ações que envidem uma transgressão inteligente dos modelos e estruturas dos poderes instituídos com seus círculos viciosos. Essas formas de poder impregnadas em nossa sociedade, como sabemos, são bastante presentes nas práticas educativas, desde expressões mais difusas às mais visíveis.

Desse modo, muito mais do que mera busca de saber, educar supõe busca de sabedoria na afirmação e na recriação de Sentidos que dão cromaticidade e vivacidade ao existir. As práticas educativas que se limitam ao âmbito da técnica, do saber formal, que se encerram na pragmaticidade do funcional, nos fragmentos da teia do existir e da cultura se confinam, como vimos, a meras práticas instrucionais. A ação de educar, como iniciação e como fruição da Sensibilidade, vislumbra o horizonte de Sentidos, que constitui a dinamicidade das relações da inteireza in-tensiva da teia do humano, do inter-humano.

O fenômeno do educar como rito de iniciação ao advento dos Sentidos humanos, mediante os fulcros estruturantes do Mitopoético, da Razão-Sentido, da Corporeidade, da Afetividade e da Intuição, vislumbra a compreensão e a vivência da inteireza in-tensiva do ser-sendo; instala processos de compreensão e de vivenciação dos Sentidos que implicam a expressão pregnante e anímica de nosso ser andrógino, no enxerto de suas ambiguidades e simbioses; implica o cuidado do ser-sendo como poiesis que se borda e se desborda, com seu pathos criante, nas in-tensidades dos feixes das contingências. Assim, na plasticidade dos fenômenos do existir, podemos incrementar um educar para o espanto e para perplexidade, para a inventividade e para a amorosidade, no urdir das aprendências e coaprendências.

Avento um ato de educar que se configura como educação pática (pathos), que se plasma como processo de sedução - se-ducere -, em que educandos e educadores são con-vocados pela simpatia e pela empatia que os fascina e os entrelaça. Como se-ducere, o educar se associa ao mexer alquímico do tacho que infunde um gosto que enfeitiça, tornando-se, assim, uma ação entusiasmante e humanada que desborda processos de encantação e de re-encantação. Dessa forma, os estados de sedução implicam a qualidade de experiências que podem resvalar na alquimia da fruição dos valores supremados que robustecem os Sentidos do humano; que podem instalar, de forma prazenteira, relações educativas animadas por processos de fruição e de criação encharcados das humidades do existir. Uma educação pática, imbuída de afetividade, que faz desbordar o amoroso, que potencializa a coexistência.

O pathos do entusiasmo decorrente do se-ducere, mediante a interligação do apolíneo e do dionisíaco, da lucidez e da ludicidade, dos pensares e dos sentires, nos co-move e con-voca aos desafios das sendas do extraordinário; faz despontar as in-tensidades dos Sentidos existenciais que infundem encantação e re-encantação ao existir humano e ao coexistir planetário. O elã criante do pathos erotiza o educar, a relação com os saberes e sentires, os processos de aprendência e de co-aprendência, podendo vicejar o humano na transitude de suas travessias mestiças; instala os feixes do estésico que dão graça e contornam o admirável. Freire (1996, p. 160) arremata: "Ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria". Portanto, um educar que fascina e co-move, desbordando admiração e contenteza, converte-se em rito de iniciação que leva à celebração da vida.

Um educar que implica o cuidar do estado de dis-posição de nossos sensos afeccionais e noéticos, da inteireza in-tensiva de nosso ser andrógino para a expressão do pathos criante, do elã vital; que implica a afinação do sentimento do mundo, da fruição da anima mundi, da simpatia do todo, em que podemos aprender a cuidar, com primor, da harmonia conflitual que constitui nosso copertencimento planetário. Um educar que compele ao cuidado esmerado de nossa condição de pontes no dinamismo e na heterogeneidade da teia ecossistêmica; de nossa condição de seres êntricos, interdependentes.

Enfim, como processo de fruição da Sensibilidade, o fenômeno do educar, ao nos conduzir à relação de coexistência entre a Ética e a Estética, potencializa a busca de sabedoria que entrelaça a dignidade e a beleza; faz desbordar as in-tensidades da policromia dos feixes arco-íricos que constituem as ambiguidades e as curvaturas, os paradoxos e os enigmas das sagas do existir e do coexistir humanos.

3. POR UMA PEDAGOGIA DO ENCANTAMENTO

Concebo o estado de encantamento, com seus matizes pedagógicos, em sua expressão de entusiasmo e de apaixonamento, de contenteza e de alumbramento, como expressão das in-tensidades existenciais em que jorra o elã do pathos que co-move e con-voca; que, assim, faz despontar o espanto e a admiração impulsionando a imaginação e o espírito criantes. Portanto, não me refiro a um estado de encantamento que se confina apenas na sua expressão de deslum-bramento como mero desbunde extático, como borbulhação espumante que pode anestesiar e cegar, que se dissolve em si mesmo.

Nesse horizonte, compreendo o encantamento como um estado constituído a partir de um "enraizamento dinâmico" e que se enrama em processos in-tensivos de fruição e de criação por meio de ações pedagógicas tocadas com apaixonamento e audácia. Ações que revelam estados de inquietude, de mobilidade e de implicação. Assim, um encantamento que agrega e interpenetra a pregnância da corporeidade, do dionisíaco e a animosidade da espiritualidade, do apolíneo.

Encantamento como expressão do estado de jorrância do impulso vital, do pathos criante, dos feixes da anima mundi, do logos spermatikós; como estado de humor que infunde animação ao existir, nos co-movendo e nos con-vocando para os desafios das ações altaneiras. Estado que emerge das fontes e das nascentes inspiradoras do onírico, do imaginário mitopoético, com a plasticidade de suas potências mobili-zadoras de nossos sentires e desejos; que nos precipita na trans-gressividade.

O dinamismo da plasticidade do estado de encantamento constela as centelhas do entusiasmo que nos inspiram e irradiam. Como foco irradiante, o estado de encantamento nos toca e arrebata, de modo penetrante. Compele o corpo e a alma às aventuras e às travessias de espantamento do extraordinário com seu vigor seminal. Parodiando Espinosa, quanto mais prazer e radiância, mais fruição e criação.

Estado de encantamento que se traduz num estado de êxtase, no extático, com seu dinamismo mobilizante, e não como estado estático que anestesia e imobiliza. Assim, uma Pedagogia do Encantamento que articula o educar como fruição da poiesis, como fazer sensível e criante, imbuído de inventividade e que conduz a novos lugares, entre-lugares e Sentidos. Que faz jorrar o estésico, o admirável, numa relação de coexistência e de coimplicação originária e originante com os fenômenos, com o existir no ser-sendo-com-os-outros; que entrelaça a Ética e a Estética, o bem e o belo.

Avento uma Pedagogia do Encantamento que, como expressão orgânica das in-tensidades da cotidianidade do educar, afirma a conflitividade do viver, que revela os fluxos tensoriais inerentes à ação do educar e que dão vivacidade a esta. Uma Pedagogia errante, itinerrante, e, portanto, aprendente, ao singrar a aventura das sagas recurvadas da transitude do educar. Assim, concebo que é de suas in-tensidades e instabilidades que podem emergir aprendências e coaprendências que tocam fundo com a força motriz/matriz do pathos criante. Pathos que impulsiona ações educativas germinais que renovam os Sentidos humanos, que instituem o extraordinário.

Uma Pedagogia do Encanctamento que, cravada na nervura do vivido/vivente, inspirada nas inquietudes internas, se faz interrogante na radicalidade do pensamento problematizador, do espírito que medita e cria; que, de modo entusiasmante, interpenetra o lúcido e o lúdico, a prosa e a poesia. Que, assim, impulsiona a dis-posição para o aberto, atravessando as ambivalências e ambiguidades do ser-sendo nas in-tensidades da tragicomicidade dos acontecimentos humanos; que entrecruza caos e cosmos, desordem e ordem, operando o dinamismo do jogo que en-volve os processos de criação. Pedagogia do Encantamento que compreende o educar como esse rito vivo de iniciação aos paradoxos, enigmas e ambivalências da condição humana, aos Sentidos humanos.

Nesse horizonte compreensivo, avento uma Pedagogia do Encantamento que compreende o educar como se-ducere, como sedução que fascina e impulsiona o advento do estado da ad-miração e do espanto mobilizadores, de conteneza e de prazerosidade. Estado que constela momentos educativos supremados, em que o espírito e o coração, entrelaçados, podem garimpar a busca da sabedoria, a fruição da beleza. Uma Pedagogia do Encantamento como fruição e como celebração dos Sentidos pregnantes e anímicos do existir, do coexistir, que se descortina arco-írica nas estampas da policromia dos Sentidos.

REFERÊNCIAS

Educação em Revista - UFMG



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