Crianças Bilíngues, o trunfo que alguns países ricos rejeitam
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Crianças Bilíngues, o trunfo que alguns países ricos rejeitam


Privar os filhos de imigrantes da sua língua materna significa criar situações de conflito entre dois modelos - o de família e o social - e desprezar suas identidades. Se suas línguas e culturas forem respeitadas pelos sistemas de ensino, essas crianças desenvolverão uma melhor estima por si e mesmas e pelos outros


Por Ranka Bijeljac-Babi ´c

Foto: Attila Kisbenedek / AFP
Crianças chinesas assistem a uma aula de húngaro na primeira escola bilíngue para a comunidade chinesa em Budapeste, capital da Hungria. Sem interesse em fazer os pequenos migrantes manter sua língua natal, governos de países ocidentais tentaram pressionar os pais a não usar esse idioma no ambiente doméstico.

Um grande número de estados ?desenvolvidos? tem línguas oficiais, mas suas populações, de várias origens étnicas, falam uma série de outros idiomas todos os dias. ?Estima-se que, no ano 2000, mais de um terço da população com idade inferior a 35 anos na urbanizada Europa Ocidental tinha uma minoria de imigrantes?, afirma um documento da Unesco sobre a diversidade da língua, que registra que ?os maiores grupos de imigrantes na União Europeia são turcos e norte-africanos, que vivem na França, na Alemanha e na Grã-Bretanha?.

Os políticos dos países ocidentais estão hoje elaborando leis para reforçar as condições de imigração e introduzindo testes de linguagem e cultura. Solicitar aos requerentes para a imigração que conheçam os rudimentos do francês, do holandês ou do inglês, bem como as regras básicas do funcionamento dos países de acolhimento, não parece absurdo.


Tenta-se ?apagar? a língua materna da cabeça das crianças

Mas, quando esses imigrantes chegam, muitas vezes há uma tentativa de ?apagar? suas línguas maternas de suas cabeças, em especial se elas são consideradas idiomas ?menores?. Precisamos apenas nos lembrar do relatório de outubro de 2004 sobre a segurança interna na França. ?[Quanto a crianças de 1 a 3 anos], só os pais, e especialmente as mães, têm contato com seus filhos. Se as crianças têm origem estrangeira, os pais devem se obrigar a falar francês em casa, a fim de fazer as crianças se acostumarem a ter apenas essa língua para se expressar?, diz o relatório, frisando: ?Mas se, em certos casos, elas sentem a relutância de seus pais, que frequentemente insistem no uso do dialeto de seus países de origem em casa, elas vão ser dissuadidas de fazê-lo. Será então necessário tomar medidas para incentivar os pais a ir na direção certa.? No texto original em francês, a palavra français (francês), designando um idioma, foi escrita em maiúsculas, o que contraria as regras da ortografia francesa. Pode-se supor que ?falar um dialeto? é entendido como falar em árabe, chinês, sérvio, etc.

Segundo esse relatório, o desenvolvimento cognitivo, social e educacional de crianças que não são obrigadas a falar francês em casa ficaria comprometido, uma vez que elas teriam inevitavelmente problemas de linguagem, levando a distúrbios comportamentais que resultariam mais tarde em delinquência!

Essa posição absurda reflete uma ignorância flagrante do desenvolvimento da linguagem e do papel da língua materna na construção cognitiva, psíquica e cultural de um indivíduo. Como, por um momento, se poderia imaginar que uma mãe pode falar numa língua que não domina bem com sua criança? Como alguém poderia ignorar o fato de que a língua materna transmite afetos, permite a organização de faculdades cognitivas, simboliza ? para crianças oriundas de famílias de imigrantes ? a continuidade entre o país de origem e a família?

Privar a criança da língua materna em casa é criar uma situação de conflito entre o modelo de família e o modelo social e entre a família e a escola, com o risco de empobrecer ainda mais referências culturais e enfraquecer a socialização.

Imigrantes ajudam a tornar línguas como o inglês mais ricas

Isso também implica que o bilinguismo não é visto como um bem, mas uma desvantagem, um obstáculo ao êxito da educação e da integração, sobretudo quando as línguas consideradas, como o árabe, o chinês ou o russo, são ridiculamente chamadas de ?raras?. Se as línguas consideradas são ?socialmente valorizadas?, como o inglês ou o alemão, o bilinguismo torna-se um símbolo da elite!

Os argumentos e as propostas para o uso (ou melhor, o não uso) da língua materna no relatório de 2004 sobre a prevenção da delinquência têm muitos adeptos nos círculos políticos e acadêmicos da França, mas o relatório provocou reações violentas: associações, ONGs, sindicatos e intelectuais foram mobilizados, e os termos do documento foram modificados. Na versão 2005, lê-se o seguinte trecho: ?Reconhecimento do bilinguismo precoce como fator de integração. Depois de muitos debates, a Comissão mudou consideravelmente sua posição sobre o assunto. Parece também que a manutenção tanto da língua materna como da língua dominante permite que as crianças tenham melhores resultados na escola (...).?

Foto: Emmanuel Pain / AFP
Aula de bretão numa escola de Brest, no noroeste da França. Pesquisas das últimas duas décadas mostram que crianças que aprendem várias línguas são mais rápidas e flexíveis em determinadas situações de aprendizagem e desenvolvem melhores habilidades de comunicação.

Os últimos 20 anos de pesquisa em psicolinguística e sociolinguística demonstram inequivocamente que a aquisição e a aprendizagem de várias línguas por crianças, não importa qual seja sua origem sociocultural, tampouco de quais línguas se esteja falando, no mínimo não impedem o desenvolvimento cognitivo e educacional desses meninos e meninas. Pelo contrário, as crianças bilíngues apresentam maior velocidade e flexibilidade em determinadas situações de aprendizagem e desenvolvem melhores habilidades de comunicação. Se elas são um pouco deficientes na segunda língua, é algo frequentemente temporário, e elas compensam isso com um sistema mental mais rico, habilidades cognitivas que são em geral mais eficientes e uma visão mais ampla do mundo.

Quando dificuldades educacionais afetam os filhos dos imigrantes, a maioria dos professores franceses coloca a culpa principalmente no conflito de línguas e culturas. No entanto, se as línguas e as culturas dos imigrantes fossem mais enfatizadas, ensinadas a todos os alunos nas escolas e respeitadas pelo sistema escolar e pela sociedade dominante, os indivíduos desenvolveriam uma melhor estima e respeito por si mesmos e, consequentemente, pelos outros.


Foto: Shutterstock

François Cheng, autor chinês que chegou a Paris com 20 anos sem saber uma palavra de francês, e que é membro da Académie Française desde 2003, escreveu em seu livro Le Dialogue (2002): ?O destino fez com que, a partir de um certo momento da minha vida, eu me tornasse o portador de duas línguas, chinês e francês. Foi apenas por conta do destino? A menos que, apesar de tudo, houvesse uma parte de livrearbítrio deliberado nele? O fato é que tentei assumir o desafio, chegando a um acordo com as duas línguas da minha própria maneira, com as consequências mais extremas. [...] Não é de estranhar que, desde então, no coração da minha aventura linguística, que é direcionada para o amor de uma linguagem adotada, um tema tenha tido lugar de destaque: o diálogo...?

Diálogo entre comunidades, diálogo entre línguas ? linguistas sabem e enfatizam o fato de que os imigrantes contribuem para o dinamismo e o enriquecimento de línguas como o inglês ou o francês. Como exemplo, a mistura de chinês, coreano, japonês e vietnamita com o inglês é um fenômeno mundial, que os imigrantes de várias origens asiáticas usam para se comunicar uns com os outros, portanto, fazendo suas próprias contribuições linguísticas. É o mesmo para o ?espanglês?: essa linguagem híbrida, que mistura inglês e espanhol e se mostra muito popular entre os jovens nos Estados Unidos, é um dos exemplos mais marcantes de mudanças em uma língua posta frente a frente com a imigração e a globalização.


REVISTA PLANETA
EDIÇÃO 454




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